19/12/2009
'Os governantes que aderem ao sistema sempre tentam nos convencer que a mudança melhora a qualidade do atendimento'
José Rabelo
Foto : SIMESP
Em 2008, após o governador Paulo Hartung anunciar que iria entregar a gestão do Hospital Central, ainda em obras, para uma Organização Social de Saúde (OSs) de São Paulo, houve um alvoroço na classe médica capixaba. Sem saber ao certo quais seriam as vantagens ou reveses que a adoção do novo modelo poderia trazer para os profissionais de saúde e para a rede de atendimento, o Sindicato dos Médicos do Espírito Santo (Siemes) decidiu organizar um fórum para debater o assunto. Ao mesmo tempo em que os médicos tentavam entender como funcionaria a gestão privatizada, o governador Paulo Hartung, alheio à discussão, assinava um contrato milionário com a Pró-Saúde – Associação Beneficente de Assistência Social e Hospitalar.
De acordo com o contrato, a OSs paulista receberia mais de R$ 38 milhões para administrar o novo Hospital Central, localizado no Centro da Capital capixaba. Enquanto o contrato era fechado, os médicos encerravam o debate convencidos de que o modelo de privatização que estava sendo implantado pelo governo provocaria efeitos colaterais à população, aos cofres públicos e à classe médica.
À época, um dos convidados para debater o tema, considerado um dos maiores especialistas do assunto, foi o presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo – Simesp, Cid Carvalhaes. O neurocirurgião, que também é formado em direito, alertou aos colegas capixabas que a privatização era uma verdadeira armadilha. "O sistema que está sendo adotado no Espírito Santo é exatamente o mesmo de São Paulo. Não há inovação alguma. Os governantes que aderem ao sistema sempre tentam nos convencer que a mudança melhora a qualidade do atendimento. Eu costumo dizer a eles que se esse sistema é capaz de triplicar ou até quadruplicar o atendimento e ainda melhorar a qualidade com menos recursos é porque alguém está fazendo mágica ou mentindo", disse o médico, na ocasião, em entrevista exclusiva a Século Diário.
Na última sexta-feira (18), um dia após a arrastada inauguração do Hospital Central finalmente ser consumada, o presidente do Simesp conversou novamente com a reportagem de Século Diário. Cid Carvalhaes se mantém como opositor ao modelo. Ele lembrou que a privatização da saúde, além de não transferir qualidade ao atendimento, já causou em São Paulo um rombo de cerca de R$ 1 bilhão nas contas públicas (dados de 2008). Carvalhaes também alertou que a Pró-Saúde não possui nenhuma referência de trabalho em cidades de maior porte e nem tampouco experiência na gestão de grandes hospitais. “A Pró-Saúde deve ser uma entidade limitada, de pequeno porte. Sinceramente, nunca ouvi falar dessa entidade. Não posso questionar a idoneidade da Pró-Saúde, mas posso afirmar que na cidade de São Paulo ou em grandes centros ela não tem experiência ou referência. Todos esses hospitais que ela administra no Estado de São Paulo são pequenos e pouco expressivos. Inclusive, muitos deles estão repletos de problemas”.
- Século Diário: Quais são os pontos mais polêmicos desse sistema de privatização da saúde pública que tem sido experimentado na gestão estadual e municipal de São Paulo?
- Cid Carvalhaes: Esse sistema na realidade não é apenas um, e sim vários. Eles poderiam ser englobados no que nós chamamos de privatização dos recursos públicos de saúde. Isso vai depender da forma de contrato que se faz em cada um desses casos. Nós temos hoje as Organizações Sociais (OSs), as Oscips (Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público), as Fundações Públicas de Direito Privado e o chamado Contrato de Gestão por Transferência de Atividades. Todas essas formas de organização, tanto do ponto de vista médico quanto sindical, podem ser englobados nos processos de privatização dos recursos da saúde. A Constituição Federal diz que a saúde é uma obrigação do Estado e um direito do cidadão, logo, compete ao Estado fazer a administração dos recursos da saúde e a execução dos programas.
- Por essa afirmação já se pode concluir que a privatização da saúde pública é inconstitucional?
- Há alternativas no meio dessa história, porque o constituinte foi híbrido quando acrescentou a chamada permissão, ou seja, ele foi permissivo ao estabelecer que em determinadas circunstâncias poderia haver a interveniência da iniciativa privada. Mas, ainda assim, o constituinte retomou uma postura de sabedoria ao assegurar na Constituição a proibição da contratualização, transferência e privatização das atividades fins. E a saúde é uma atividade fim, ela se esgota em si mesma. Daí se volta a uma demanda de constitucionalidade ou não da medida. Essa discussão tem sido alvo de Adis [Ações Diretas de Inconstitucionalidade] no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma delas já está no Supremo há nove anos.
- Em setembro de 2008, o senhor dizia que havia diversas Adis paradas no STF. A situação continua a mesma?
- Está tudo exatamente na mesma. As Adis continuam deitadas eternamente em berço esplêndido no STF à espera de uma decisão. Lamentavelmente, continuamos à mercê do julgamento dos ministros. O que se percebe é que não há vontade do Supremo em decidir a questão. É preciso entender que essa é uma matéria que está sob judice, ou seja, está sendo argüida a constitucionalidade desta lei. Se ela, que é uma lei federal, for julgada inconstitucional pelo Supremo, as demais leis estaduais se submetem à decisão do Supremo, e por conseqüência serão declaradas inconstitucionais. Se, no entanto, ela for declarada constitucional, as leis estaduais continuaram no curso para serem apreciadas. Em seguida, o STF vai avaliar se há inconstitucionalidade. Portanto, é uma matéria que continua sem definição no momento
- Quais são os principais prejuízos desse sistema à rede pública de atendimento?
- Esse processo teve início no governo Mário Covas, se seguiu na gestão de Geraldo Alckmin e continua na administração de José Serra. Serra, durante sua gestão na prefeitura de São Paulo, também aderiu ao sistema, que foi mantido pelo atual prefeito Gilberto Kassab. Existem problemas sérios. Vários desses contratos revelaram verdadeiros rombos no dinheiro público. Por exemplo, o Hospital Municipal de Cotia (30 km de São Paulo) fechou por incapacidade de gestão da SPDM/Unifesp (organização que administrava o hospital). O Hospital Sanatorinho de Itú (102 km de São Paulo) teve uma intervenção judicial com o cancelamento de todos os contratos até então celebrados. Houve então uma reintervenção da administração municipal, que foi obrigada a reassumir a gestão do hospital e, posteriormente, transferiu a administração novamente para outra organização social. Com o Hospital de Ferraz de Vasconcelos aconteceu o mesmo. Além desses casos, existe o rombo, conhecido por todos, de R$ 250 milhões na Fundação Zerbini, que administra o Incor (Instituto do Coração). Esses são só alguns exemplos de catástrofes severamente graves nesse processo de privatização. Somando todos os rombos causados ao dinheiro público nesses processos chagaremos a um valor de cerca de R$ 1 bilhão [dados de 2008].
- A privatização da margem para que a organização social faça contratações dos recursos humanos sem concurso, assim como as compras de materiais sem licitação. Esse arranjo acaba interferindo diretamente na qualidade do atendimento?
- Quando entramos no mérito de analisar a gestão dos recursos públicos, os recursos humanos e por aí afora, percebemos uma série de contradições muito graves nesse sistema. Os hospitais gerenciados por organizações sociais funcionam em um sistema chamado de "portas fechadas". Esse sistema permite que a instituição escolha o tipo de paciente que ela quer atender. Como geralmente essas instituições não fazem o atendimento direto e sim referenciado, elas vão restringir o atendimento a partir da demanda de uma Central de Regulação. O caso vai ser avaliado e a instituição vai decidir se irá atender ou não a demanda. A questão dos recursos humanos é outro problema grave. É preciso lembrar que todos esses serviços são geridos por recursos públicos. E a gestão pública prevê seleção igualitária por meio de concurso público. Esse contrato de gestão permite que o gerenciamento de recursos se faça por meio de determinações diretas daquela organização responsável pela gestão do serviço. Essas instituições podem fazer essas contratações a seu bel-prazer, dispensando todos os procedimentos previstos em lei para a gestão pública, como licitação, seleção, concurso público, provimentos de cargos, escalas ascendentes, entre outras exigências.
- O contrato firmado entre a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa) e a Pró-Saúde segue exatamente esse sistema de atendimento de "portas fechadas". O Hospital Central vai funcionar como retaguarda de atendimento de outros três hospitais (São Lucas, Dório Silva e Bezerra de Faria) e só receberá pacientes para internação após avaliação prévia da Central de Regulação. Esse arranjo permitirá que o hospital controle seletivamente sua demanda e possa mascarar um atendimento de qualidade. O senhor não concorda?
- O sistema que está sendo adotado no Espírito Santo é exatamente o mesmo de São Paulo. Não há inovação alguma. Os governantes que aderem ao sistema sempre tentam nos convencer que a mudança melhora a qualidade do atendimento. Eu costumo dizer a eles que se esse sistema é capaz de triplicar ou até quadruplicar o atendimento e ainda melhorar a qualidade com menos recursos é porque alguém está fazendo mágica ou mentindo. Como nós não queremos trabalhar nem com mágica nem com mentira, então vamos privatizar também o governo. Vamos começar privatizando o cargo do governador, porque ele está se mostrando incompetente, do secretário de Saúde e por aí afora... [ironiza].
- Ao optar pela privatização o governo não estaria admitindo que é incompetente?
- Admitindo não, ele está confirmando publicamente a incompetência, a incapacidade e a completa ignorância de gestão. Se o governante, eleito democraticamente, reconhece publicamente que é incompetente, incapaz e ignora uma questão dessa ordem, o mínimo que ele devia fazer era renunciar ao cargo, até por uma questão de coerência e compromisso com a população. Se o governante não faz isso, ele começa a navegar em outro capítulo dessa história, que é o da desconfiança gerencial e má fé ao defender interesses supostamente escusos. O resultado desse processo a médio e longo prazos, pegando por base São Paulo que iniciou esse sistema, não é nada animador. O que sabemos é que o atendimento não registrou melhoras, pelo contrário, as filas aumentaram ainda mais. Existe ainda outra questão enganosa. Eles defendem que esse sistema é capaz de melhorar o atendimento de urgência, que passaria a ser mais eficiente, mas isso absolutamente não aconteceu na prática. Muito pelo contrário, esse tipo de atendimento seletivo e restritivo aumenta ainda mais a demanda dos serviços de urgência, fazendo despencar a qualidade.
Fonte: Século Diário,Espírito Santo LINK
Cid Célio Jayme Carvalhaes,Presidente do SIMESP(SINDICATO DOS MÉDICOS DE SÃO PAULO) LINK
• Formado pela Faculdade de Medicina da UFMG, em 1969
• Neurocirurgião, título de Especialista conferido pela Sociedade Brasileira de Neurocirurgia - SBN
• Presidente da SBN, gestão 2000-2002
• Membro do Conselho Deliberativo da SBN, gestão 2002-2008
• Membro Titular da Academia de Medicina de São Paulo
• Presidente do Simesp, gestão 2005-2008
• Secretário de Imprensa da Fenam, gestão 2006-2008
• Advogado, graduado pela UNIFMU, 1993, área de atuação: Responsabilidade Médica