I. Conceito e cadeia epidemiológica das infecções hospitalares
Com uma regularidade impressionante, novamente as infecções hospitalares voltaram aos noticiários e mais uma vez procura-se um culpado de plantão. Uma inquietação é reforçada neste momento nos pacientes, profissionais de saúde e administradores hospitalares: poderei um dia estar envolvido numa situação destas e o que estou fazendo para preveni-la?
Os estudos sobre a infecção hospitalar tiveram início no século XIX, na Áustria. Mulheres morriam após o parto por terem contraído um mal desconhecido. Na época pesquisas mostraram que os estudantes de medicina depois de fazerem autópsias examinavam as parturientes sem lavar as mãos ou usarem qualquer tipo de proteção, o que levava à infecção. Uma simples medida preconizada, a lavagem das mãos, reduziu significativamente o índice de infecção.
Com a descoberta dos antibióticos, os médicos achavam que as infecções estariam extintas, porém o abuso na sua utilização, selecionou germes resistentes, tornando mais grave o problema. A única maneira de amenizar esse mal é através do controle e da prevenção coordenados por uma Comissão de Controle de Infecção Hospitalar, que embora seja uma exigência legal, é encontrada em menos da metade dos hospitais brasileiros e ainda assim, a minoria das Comissões existentes exerce atividades básicas de controle, de acordo com levantamento realizado pelo próprio Ministério da Saúde.
Resumidamente, conceituamos infecção hospitalar como qualquer processo infeccioso adquirido no ambiente hospitalar. É diagnosticado principalmente em pacientes durante sua internação, mas pode ser detectado após alta e atingir também qualquer outra pessoa presente no hospital. As infecções hospitalares são aquelas relacionadas a hospitalização de um paciente ou aos procedimentos diagnósticos ou terapêuticos praticados. Ao contrário das infecções comunitárias, que são devidas aos patógenos primários, adquiridos de fontes exógenas, elas ocorrem fundamentalmente devido ao desequilíbrio da microbiota, que habita o corpo humano, com os mecanismos de defesa do paciente. O corpo humano é composto por cerca de 30 bilhões de células e alberga mais de 300 bilhões de microrganismos, que formam a microbiota humana normal, superando em 10 vezes as nossas próprias células. Estes microrganismos estão integrados ecologicamente, assumindo papel importante, colaborando em várias funções vitais e até mesmo na defesa antiinfecciosa, desde que este equilíbrio seja mantido.
Particularmente, no ambiente hospitalar vários fatores contribuem na ruptura deste equilíbrio. Muitas patologias apresentadas pelo paciente interferem com seus mecanismos de defesa predispondo-o às infecções. Os procedimentos invasivos podem representar uma porta de entrada de microrganismos e o uso de antimicrobianos faz pressão seletiva em favor dos germes resistentes, favorecendo sua superpopulação. A interação destes fatores colabora para perturbar a convivência pacífica do homem com sua flora, desencadeando o processo infeccioso. A transmissão cruzada de infecções pode ocorrer principalmente pelas mãos da equipe ou por artigos recentemente contaminados pelo paciente, principalmente pelo contato com sangue, secreção ou excretas eliminados. O meio ambiente tem importância secundária na cadeia epidemiológica destas infecções, exceto: para as doenças contagiosas por via aérea, como é o caso da tuberculose, que devem ser devidamente isoladas; para patógenos que sobrevivem em ambientes especiais como a Legionella em ar condicionado ou reservatórios de água quente; reformas feitas sem a devida proteção da área, permitindo a disseminação ambiental de fungos como a Aspergillus; e finalmente para casos em que os preceitos básicos de higiene não são seguidos. Mais raramente ainda, a presença de um profissional disseminador de um microrganismo ou a utilização de um medicamento contaminado podem levar a um surto de infecção.
Portanto, cada cuidado prestado direta ou indiretamente ao paciente deve ser avaliado quanto ao potencial de transmissão de infecções, devendo-se no planejamento desta atividade levar-se em conta este risco, elaborando-se uma padronização adequada. Todos os funcionários devem ser continuamente reciclados nas medidas de controle, contribuindo para que cada um perceba seu papel no processo de cura de um paciente.
II. O programa de controle de infecções
A administração hospitalar recebe o apoio de várias comissões em assuntos específicos de ordem ética, técnica ou mesmo administrativa. Com este objetivo, são criados vários comitês, alguns até regulamentados por legislação específica. Destacam-se: Comissões de Ética; Comissão de Revisão de Prontuários; Comissão de Óbitos; Comissão de Farmácia e Terapêutica; Comissão de Padronização de Artigos e Insumos Médico-Hospitalares; Comissão de Prevenção Interna de Acidentes; Comissão de Controle de Qualidade e a própria Comissão de Controle de Infecção Hospitalar. Estes comitês fazem uma análise da situação local e aplicam os conhecimentos disponíveis sobre o assunto, apoiando e auditando o exercício profissional. Portanto, dentro de uma estrutura organizacional, o controle de infecção é um órgão de consultoria à direção do hospital e a todos os profissionais que atuam diretamente com o paciente ou em atividades de apoio, em assuntos relativos à prevenção e controle das infecções hospitalares.
A Lei Federal 6.431 de 06/01/97 obriga todos os hospitais brasileiros constituírem Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) que deverá atuar de acordo com Programa desenvolvido na própria instituição. A referida lei instituiu a obrigatoriedade da existência da CCIH e de um Programa de Controle de Infecções Hospitalares (PCIH), definido como um conjunto de ações desenvolvidas deliberada e sistematicamente, tendo como objetivo a redução máxima possível da incidência e gravidade das infecções nosocomiais. Em 13/05/98, o Ministério da Saúde editou a Portaria 2.616/98, com diretrizes e normas para a execução destas ações. Esta Portaria representou a adequação da antiga regulamentação ministerial às novas determinações da Lei Federal.
Como as Portarias anteriores, a 2.616/98 é composta por cinco anexos. O primeiro trata da organização e competências da CCIH e do PCIH. No anexo II temos conceito e critérios diagnósticos das infecções hospitalares; no anexo III temos orientações sobre a vigilância epidemiológica das infecções hospitalares e seus indicadores; nos anexos IV e V observamos recomendações sobre a lavagem das mãos e outros temas como uso de germicidas, microbiologia, lavanderia e farmácia, dando ênfase à observância de publicações anteriores do Ministério da Saúde.
Nesta nova Portaria, há melhor especificação da composição da CCIH, que deverá ter seus membros formalmente designados pela direção do hospital, incluindo seu presidente, que fará obrigatoriamente parte do conselho diretivo da instituição.
ROTEIRO DE INSPEÇÃO DO PROGRAMA DE CONTROLE DE INFECÇÃO HOSPITALAR
COMO A JUSTIÇA ATUA NOS PROCESSOS DE INFECÇÃO HOSPITALAR
De acordo com a pesquisa jurisprudencial realizada pelo Idec em maio de 2006 junto aos principais tribunais do nosso País, nota-se que, apesar de haver centenas de decisões em alguns tribunais, ainda são - comparativamente a outros temas - poucos os casos em que os consumidores procuram na Justiça a reparação dos danos sofridos pela ocorrência de infecção hospitalar.
Por exemplo, pesquisa para este relatório no TJ do Paraná indicava a existência de 16 processos julgados até esta data. Outros tribunais estaduais, como o do Rio Grande do Sul e São Paulo apresentavam um número maior, com 39 e 189 decisões, respectivamente.
Quanto às decisões, observa-se que a maioria dos tribunais considera como prestação de serviço, a relação entre o paciente e o hospital que presta os serviços médicos, usando na maioria dos casos fundamentação específica do Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90.
Nota-se a utilização do Artigo art. 6º, VIII, do CDC na maioria das decisões, com inversão do ônus da prova, reconhecendo o consumidor como hipossuficiente e transferindo aos hospitais a incumbência de provar que o fato gerador do ilícito não foi de sua responsabilidade.
Outro artigo do CDC também bastante utilizado na fundamentação das decisões é o Artigo 14 caput que trata da responsabilidade objetiva do hospital quando da prestação de serviços, afastando a necessidade de prova de imperícia, imprudência ou negligência. Dessa forma, a instituição nosocomial responde pelo fato, não podendo atribuir aos seus profissionais a responsabilidade do mesmo.
Também, nota-se que nossos Tribunais têm acolhido em grande parte os pedidos de indenização provenientes de infecção hospitalar. Não há, nessa pesquisa, um levantamento mais aprofundado sobre os valores de indenização.
Cabe o registro da decisão da 4ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região que confirmou no último mês de Abril o pagamento de indenização a uma mulher que contraiu infecção hospitalar durante a realização de uma cesariana no hospital da Fundação Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Com a decisão, a universidade gaúcha deverá ressarcir os gastos que a paciente teve para tratar a infecção e pagar R$ 100 mil pelos danos morais, além de valores referentes à remuneração que ela deixou de receber em decorrência do problema.
São raros os casos em que o consumidor não obtém êxito na demanda e nos casos estudados, quando isto ocorreu foi porque não houve a inversão do ônus da prova e não foi possível a comprovação de que a infecção adquirida foi de responsabilidade do hospital.
Tendo em vista que as decisões da Justiça acolhem os casos de infecção hospitalar sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, é importante que o consumidor como em qualquer prestação de serviços contratada, guarde toda a documentação referente ao serviço prestado, notas, receitas, cópia do prontuário médico, etc., para que desta forma, se necessário, possa exigir a responsabilidade do hospital por eventual dano causado.