José Paranaguá de Santana*
As ciências humanas ou humanidades são as disciplinas que tratam dos aspectos do homem como indivíduo e como ser social. Dito isto, encerro minha incursão sem preocupação de aprofundamento sobre o que sejam as ciências humanas como campo de saber. Em especial tendo em vista a conferência que acabamos de ouvir do Presidente da Academia Brasileira de Filosofia, João Ricardo Moderno, bem como da exposição do orador da Academia Nacional de Medicina, Aníbal Gil Lopes.
Minhas palavras iniciais neste painel visam louvar a empreitada que em tão boa hora propôs o presidente do Conselho Federal de Medicina, o ilustre acadêmico Roberto Luiz d´Avila, ao convocar as academias de medicina do Brasil para debater o tema “Humanidades em Medicina”. Não pretendo desfiar análises filosóficas, pois não tenho essa capacidade. Igualmente não quero aventurar-me em propor reflexões de duvidoso valor prático, dado minha parca experiência com as ciências humanas e com a própria clínica médica. Aproveito a oportunidade para dizer aos eminentes ouvintes que interpretei o convite para essa palestra como um ato benevolente e atencioso do distinto amigo Roberto d´Avila, que valoriza este humilde colega bem acima das capacidades que possuo. E espero contar com a cordial atenção dos presentes, ao ousar apresentar-lhes algumas meditações sobre o tema posto em debate.
Pareceu-me que o motivo que une o CFM e as academias na discussão sobre a importância das humanidades em medicina tem a ver com o entendimento de que se estreita a cada dia o trato dos médicos às dimensões exclusivamente biológicas dos pacientes. Acentua-se progressivamente o que se poderia designar como uma indiferença para com a totalidade do ser humano, circunstancialmente portador de morbidades passíveis de cura ou remediação pelas ciências médicas.
Indiferença. Esse é o termo que adotarei como objeto de reflexão.
Sob a ótica da indiferença, tudo na vida vai se transformando em coisa comum. Até a violência nas ruas já se tornou trivial, desde a violência dos acidentes de trânsito e do próprio trafegar nas ruas e nas estradas, ao perigo dos assaltos e da repressão policial.
E as violências mais sorrateiras, que acontecem no interior das moradias, das escolas, dos locais de trabalho e até de lazer?
O que dizer então do cotidiano da atenção a saúde? Do cuidar dos vulneráveis ou debilitados? Do atendimento dos pacientes nos consultórios, nos ambulatórios e nas enfermarias?
O que efetivamente sabemos sobre tudo isso? Por que nos habituamos a tantas faces da violência? Por que a indiferença?
Até a morte não causa mais espanto. Ainda nos surpreende quando ela toma proporções grotescas como guerras, assassinatos em série ou faxinas étnicas. Mesmo assim, somente asco passageiro ante tais acontecimentos, mormente quando ocorrem distante, longe de nós, em outras partes do mundo, em outras cidades ou bairros afastados.
E o que dizer então das mortes que povoam as estatísticas de saúde, identificadas individualmente sob o irônico pseudônimo de “êxito letal” de doenças infecciosas ou degenerativas? E o que sentir a respeito do sofrimento associado a essas mortes que acomete as vítimas e seus familiares e amigos?
Sob o costume da indiferença, todos esses eventos passam a ser coisa comum. A violência nas ruas e no trânsito, a violência doméstica e institucional. E por que não a violência no contexto dos serviços de saúde? As mortes nas guerras que ocorrem em países distantes e nas ocorrências criminais nas cidades, inclusive naquelas em que vivemos também viraram coisas comuns. E por que não as mortes e os sofrimentos que ocorrem nos serviços de saúde ou mesmo por falta deles?
A indiferença ou descaso com a violência, a morte e o sofrimento em geral tem a ver com a indiferença ou descaso com o sofrimento, a morte e a violência que se perpetuam nos contextos de vida dos médicos. Apenas levanto essa conjectura, sem pretender assegurar uma correlação entre tais atitudes. A indiferença disseminada ante as violências e mortes de um modo geral teria causa comum e efeito sinérgico ou de soma interativa com uma atitude similar ante as situações corriqueiras na experiência profissional dos médicos. Formulada a hipótese, dever-se-ia refutá-la ou admitir sua veracidade. E, se assim fosse, qual seria o valor dessa conclusão? Que conseqüências úteis se poderiam explorar? O que fazer?
Por que falar em indiferença ou descaso com a violência, a morte e o sofrimento alheio, quando o assunto em tela são as humanidades e a medicina? Que nexo estabelecer entre a indiferença e o saber sobre as humanidades? Esse percurso de indagações leva a outra conjectura: a atitude de indiferença varia conforme o grau de conhecimento ou domínio intelectual sobre temas da antropologia, da história, da ciência política, da geografia humana, da filosofia ou de outras disciplinas das ciências humanas. Equivaleria a dizer que o descaso convive melhor com a ignorância do que com a informaçao e a capacidade de analisar e avaliar. Se os intentos de refutaçao não lograrem contestar essa afirmaçao, caberia repetir a indagaçao anterior: que conseqüências úteis se poderiam explorar? O que fazer?
Retomo nesse ponto a conjectura formulada inicialmente, como expressão subjacente ao propósito do CFM e das academias ao focalizar as humanidades em medicina: que se verifica progressiva indiferença dos médicos para com a totalidade do ser humano. Certamente aos médicos pode-se aplicar a reflexão de Terêncio: "Sou humano, e nada que é humano me é estranho". Devotados ao conhecimento dos infortúnios que afetam o bem estar dos seus semelhantes, nada sobre a vida das pessoas deveria ser indiferente aos médicos. Portanto, por que não nos soa estranha tal conjectura? Se for verdadeira, novamente surge a pergunta impertinente: o que fazer?
Em boa hora, já o reconheci desde o início, foi tomada a decisão de tratar de tema tão caro ao que fazer da medicina. Ao tecer essas breves considerações, meu intento é alertar para a importância de melhor conhecer a situação que a todos preocupa, antes de tomar iniciativas que porventura, ou desventura, não logrem o almejado resultado. Desse modo, os primeiros passos devem ser o confronto de cada uma das conjecturas formuladas, dissecando suas origens e mapeando suas configurações, de modo a elaborar um quadro explicativo suficientemente claro sobre as questões formuladas em relação ao médico na atualidade:
Por que sendo humano, tanto que é humano lhe é estranho?
É plausível superar a indiferença sobre questões específicas, sem levar em conta a indiferença sobre as questões gerais?
Como fazer florescer o saber sobre as humanidades de modo a ampliar a visão holística sobre o homem?
Acenarei com apenas uma reflexão sobre essas três indagações, longe de arriscar ainda que fosse um simples ensaio de resposta. Sobre a qualidade de ser humano, diria que as virtudes da consciência e da justiça, que alicerçam a ordem social, não são atributos naturais do homem; e certamente o aprendizado dessas virtudes é um processo bem diferente do domínio das habilidades técnicas, como as que são próprias da medicina. Portanto, mergulhado na sua origem humana, o médico não tem os dons inatos de respeito aos demais (consciência) e discernimento entre o certo e o errado (justiça), tal qual não nasce dotado das competências técnicas para o exercício de sua profissão. Do aprendizado técnico encarrega-se a escola médica, com todas as limitações que lhe são próprias. Quanto à formação moral, a escola apenas acrescenta sua parte – seguramente com limitações ainda maiores – ao aprendizado que deve iniciar-se precocemente (ainda no colo das mães) e prosseguir por toda a vida mediante o convívio entre cidadãos. Por esses motivos, saltando para a terceira questão acima, não me conformaria com a alternativa corriqueiramente apontada de fazer aflorarem as humanidades na medicina pela introdução, no currículo escolar dos médicos, de disciplinas desse campo de conhecimento. Acreditaria mais numa linha de ação a ser desenvolvida de forma integrada com as escolas médicas, iniciada nos primeiros anos do curso, mas que prossiga ao longo de toda a vida profissional, alicerçada na regulação vigilante oriunda dos conselhos profissionais e outras instituições como as academias médicas, que por sua vez devem subordinar-se a regulações republicanas e não somente corporativas. Contudo, não recomendaria o detalhamento dessas medidas antes de um aprofundado exercício de reflexão e debate sobre as duas primeiras questões.
Encerro meu discurso esperançoso de contribuir para o debate que se seguirá, neste plenário e nos fóruns que sucederão a este I Congresso Brasileiro de Humanidades em Medicina. Apontei somente três conjecturas e uma dúvida a guisa de conclusão, movido antes de tudo pela cautela ante um tema e um desafio ainda obscuro para mim. Por isso fui breve e me sentiria honrado em ouvir críticas e comentários que seguramente me ajudarão a compreender melhor e quiçá, contribuir para a empreitada que o CFM nos propõe. Assim, agradeço a atenção com que me brindaram os presentes neste seleto auditório.
* José Paranaguá de Santana é consultor da OPAS/OMS, Representação do Brasil, vice-presidente da Academia de Medicina de Brasília e secretário adjunto da Federação Brasileira das Academias de Medicina (FBAM).