20 novembro 2011
Por Vladimir Passos de Freitas
Ingênua é a pessoa pura, simples, sem malícia. Regra geral, seres humanos bons, que evitam falar de coisas desagradáveis, vêem em todos pessoas maravilhosas e seguem crendo piamente no ser humano.
Por vezes, pessoa com este tipo de perfil psicológico torna-se magistrado. Sempre por concurso, pois os que entram nas vagas do quinto constitucional, ou por indicação nos Tribunais Superiores, podem ser tudo menos ingênuos.
A ingenuidade costuma ser mais forte entre os jovens juízes. Dedicados aos estudos rigorosos para as provas, via de regra trazendo na bagagem profissional nada mais do que um ou dois estágios, eles não foram marcados pela vida. Mas a regra não é absoluta. Há muitos magistrados sexagenários que permanecem impolutamente puros, em estágio de pré-adolescência, porque durante toda a vida protegeram-se das investidas da realidade. Como se tivessem ao redor da mente uma camada impermeável contra as más notícias.
Nos concursos para a magistratura não há como aferir se alguém é ou não ingênuo. Contudo, o exame psicotécnico poderá revelar características da personalidade que revelam inadequação ao cargo. Isto, dependendo do valor que o Tribunal dá ou não ao referido exame, pode influir na nomeação. Porém é possível afirmar que no estágio atual dos certames não existe preocupação com o grau de vivência do candidato.
Mas como a ingenuidade poderá influenciar na função? A resposta é múltipla. De variadas formas. Vejamos exemplos, sempre baseados em casos reais.
Assumindo o cargo no interior, será o jovem magistrado procurado por pessoas simpaticíssimas, que se disporão a resolver todos os seus problemas, até buscar em sua cidade natal, distante 600 km, o piano de cauda que pertencia à sua mãe. E assim, gentileza aqui, afago ali, ficará o magistrado envolvido com alguém que tirará bom proveito de sua amizade.
Em um passo adiante, já em uma zona de mais perigo, poderá aceitar convite para uma animada festa em uma chácara, onde algumas coelhinhas farão um strip. Ambiente animado, risos, todos alegres, presentes pessoas de destaque local (por exemplo, o gerente do banco). E uma filmadora registrando tudo. Aí pode encerrar-se a carreira de um ingênuo não vitaliciado.
Na carreira vai tendo oportunidades de exteriorizar seus bons propósitos. Sempre com uma característica. Beneficia o particular, sem preocupar-se com o geral. O dó é pessoal, a preocupação nunca é com o público, o coletivo. Na sua ótica o estado é o eterno vilão e as pessoas, anjos.
Focado nesta visão, não hesita em conceder liminares a candidatos em caríssimos e complexos concursos públicos, por vezes reexaminando se a questão é certa ou errada, não tem dúvida em ignorar os péssimos antecedentes de um réu pelo fato dele não ter uma sentença condenatória transitada em julgado (que pode demorar uma década), não pensa duas vezes para conceder a busca e apreensão de uma criança, pelo fato principal de ter sido visitado não apenas pelo advogado, mas também por um pai ou mãe em lágrimas.
Mas a ingenuidade não é só deste lado. Pode estar do outro. Por exemplo, deixando-se influenciar pela autoridade policial ou pelo agente do Ministério Público, que lhe relatam fatos revoltantes. Por vezes, imbuído dos melhores propósitos, estará deixando a condição de juiz e a indispensável imparcialidade, para assumir o papel de coadjuvante na acusação. Em outras, ingênuo das mazelas administrativas, poderá estar prestigiando a má conduta e exigência indevidas do mau administrador.
Um dia chega à segunda instância. No Tribunal, o poder é maior. Na jurisdição, o precedente pode criar jurisprudência. Na administração, persiste no pessoal contra o interesse público. Por exemplo, aprovado em concurso, o funcionário assume no interior. Três meses depois pede remoção para a capital, por isto ou aquilo (falta de bom médico é uma opção muito adotada). Ele defere, sem pensar um momento sequer nos milhares de jurisdicionados que pagarão o preço do atraso no andamento de seus processos.
Ao tomar conhecimento de que um colega responde uma sindicância na Corregedoria Nacional deJustiça, reagirá indignado, mesmo sem ter conhecimento do que se trata. Dirá que isto fere o pacto federativo e — como se tivesse notícias confidenciais —, que é um plano astucioso para desmoralizar o Poder Judiciário. Só não lembrará que nem o seu, nem outro Tribunal, apura a responsabilidade e muito menos pune os seus iguais.
Assim irá o ingênuo, do começo ao fim. Às vezes ele é confundido com o mal intencionado. Como está sempre concluindo que cada parte é vítima disto ou daquilo, suas decisões podem ser mal interpretadas. Pode ser visto como um magistrado desonesto, o que não é o caso. E acaba sofrendo muito, como a realidade tem se encarregado de mostrar.
De tudo isto duas conclusões podem ser tiradas. A primeira delas é a de que não é fácil ser magistrado. Restrições a cada passo. O que quase todos fazem (por exemplo, comprar três garrafas de uísque no Paraguai) a ele não é permitido. Limitação de vida a todo instante. A quem isto não agrada, o melhor é procurar outras carreiras que, além de mais livres, dão atualmente mais vantagens pecuniárias.
A segunda é a de que os ingênuos, querendo fazer o bem, acabam fazendo o mal ao todo, ao conjunto, ao interesse público. São pessoas boas, quiçá com uma carência afetiva que os leva, inconscientemente, a conceder benesses a todo momento, como forma de tornarem-se queridos. Pura ilusão, óbvio.
Enfim, este é mais um ângulo da administração da Justiça a merecer análise. Sobre ele, a psicologia tem mais a dizer do que as Ciências Jurídicas.
Nisto tudo, certamente a melhor posição é a de Voltaire, o filósofo iluminista, “um adversário do otimismo metafísico que propugnava a idéia de que o homem vive no melhor dos mundos possíveis e do qual está excluída a existência do mal” (Enciclopédia Abril, v. 12, p. 4979). No entanto, para ele o mal poderia ser superado pelo trabalho e pelas luzes da razão.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 20 de novembro de 2011