Quando a ciência abala o código moral
Raquel Wandelli
O avanço das ciências incide de forma avassaladora sobre a conduta humana, afetando e modificando progressivamente valores, crenças e critérios tradicionais que regem as relações dos indivíduos e sociedades. A tal ponto que a bioética tornou-se uma área estratégica e emergente nesses tempos de manipulação de células-tronco que colocam em crise os parâmetros éticos, culturais e religiosos da humanidade. Termos jurídicos como o Pensamento Vital ou Diretrizes Antecipadas, que garantem o direito do indivíduo de solicitar previamente medidas como a eutanásia, em caso de vida vegetativa, reivindicam mudanças no Código Penal que respeitem a vontade e autonomia do indivíduo sobre concepções preestabelecidas acerca da vida.
No próximo ano, um grande fórum terá lugar em Florianópolis com a realização do X Congresso Brasileiro de Bioética, que será presidido de 24 a 27 de setembro pelo médico e ex-reitor da UFSC Bruno Schlemper. Questões muito controversas, como o direito ao aborto até três meses de gravidez vão entrar em debate. Adiantando-se a essa temática, a Editora da UFSC lança em sua Feira de Livros a obra Bioética: autopreservação, Enigmas e Responsabilidade, do filósofo do Direito José Heck, que facilita a discussãoética buscando os pontos de convergência e discordância entre ciência e filosofia ao longo da história, desde Platão e Aristóteles até os dias atuais.
Pesquisador de reconhecido fôlego, Heck se diferencia por tratar a bioética de forma transdisciplinar, bem como por inserir a discussão no contexto dos desafios ambientais. Professor do doutorado em Ciências Ambientais da Universidade Federal de Goiás, Heck integrou, entre 1978 e 1979, o Departamento de Filosofia da UFSC, logo após defender tese de doutorado na Universidade de Munique sobre saúde e doença à luz da filosofia de Platão e da psicanálise freudiana.
Nesse estudo, o autor compreende a bioética dentro de uma visão não antropocêntrica do mundo, que abarca os humanos, os animais e a natureza enquanto um conjunto com valor interdependente, que sobrepõe sua existência à revelia da vontade ou mesmo da permanência do homem no planeta. Nada indica, e muito menos assegura, que o notório ser senhor do animal racional sobre outras criaturas implique um primado da conservação dos humanos sobre o restante do universo , escreve o autor, que é também pró-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Católica de Goiás.
Ao explicitar contrapontos cruciais entre os dogmas cristãos e os princípios filosóficos, em uma rede de disputas que remetem à origem da modernidade, a obra expõe o aspecto explosivo e complexo da bioética, muito mais marcada por acirradas polêmicas do que por consensos. Dada a persistência cotidiana dos conflitos morais nas práticas biomédicas, a figura dos profissionais em saúde, ainda cercada de uma aura simbólica sacra, não pode atuar à revelia das diretrizes bioéticas. De modo semelhante, os supostos colapsos da natureza, anunciados pela ciência, estão colocando em xeque consolidadas doutrinas religiosas sobre a supremacia do homem na Terra e sobre a origem da vida.
O livro mostra que o conhecimento da bioética se produz e desenvolve no contexto das descobertas científicas de diversos saberes e repercute as concepções acerca da saúde, da liberdade do indivíduo, da dignidade da pessoa humana e do direito dos humanos à fruição de um meio ambiente sadio. Heck critica os modelos convencionais das disciplinas segmentadas e advoga a multidisciplinaridade dos saberes científicos com os não científicos.
Com profundidade científica de um filósofo e a eloquência de um jurista, Heck lança o foco bioético em uma rede de interações multidisciplinares. Nessa nova perspectiva examina, à luz das descobertas científicas e das novas habilidades técnicas, questões cruciais como a dignidade da pessoa, a fragilidade dos seres humanos e a necessária cumplicidade dos variados saberes com as condições de saúde e do direito dos indivíduos à fruição de um meio ambiente sadio.
* Raquel Wandelli é jornalista, doutoranda em Literatura e professora universitária
Bioética, autopreservação, enigmas e responsabilidade
De José Heck. EdUFSC. 184 págs.,