Jeancarlo Fernandes Cavalcante - Presidente do CRM/RN
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Diante do descaso com a saúde pública do Estado, lembrei-me que há algum tempo tive a oportunidade de ler “Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal” da alemã, naturalizada americana, Hanna Arendt. Essa cientista política, na tentativa de compreender a história ocidental da primeira metade do século XX, estudou profundamente os regimes totalitários da Europa, com especial ênfase ao nazismo e ao stalinismo.
Atuando como repórter da revista americana New Yorker, ela foi enviada a Jerusalém no ano de 1961 para cobrir o julgamento de Adolf Eichmann, nazista capturado em Buenos Aires e levado a Israel para julgamento, acusado de crimes contra o povo judeu e contra a humanidade.
Analisando detalhadamente a personalidade de Eichmann, Arendt não encontrou nele nenhuma característica anti-semita, nem muito menos um comportamento compatível com um “monstro” ou um doente, ao contrário, parecia estar diante de um homem normal. Era apenas um burocrata cumprindo ordens sem meditar em suas consequências, sua única aspiração era a sua ascensão profissional, desprovido do sentimento do bem ou do mal.
A partir desse contexto, Arendt cunhou a expressão “banalização do mal” para designar aquelas pessoas que agem dentro das regras do sistema a que pertencem sem racionalizar seus atos, e diante dessa complexidade humana chamou atenção para os “atos de banalização do mal” para evitarmos a sua ocorrência em sociedades muitas vezes adormecidas no seu senso crítico.
Reservadas as devidas proporções, percebi que o que ocorria no nosso maior hospital de urgências e emergências era uma banalização do mal, passou a ficar “normal” e não mais incomodar as pessoas que alguém pudesse morrer por falta de vaga em UTI, ou amputar uma perna porque não tinha antibiótico para combater a infecção do paciente diabético, crianças que morrem também por falta de vaga em uma UTI, pacientes graves que ficam em cadeiras nos corredores fétidos pela superpopulação. São pessoas que pagam impostos e que têm direito a um atendimento digno no SUS. Não podemos aceitar a desculpa desumana e desastrosa que recebi outro dia de um burocrata, ao afirmar que ninguém poderia garantir que esses pacientes sobreviveriam se tivessem disponíveis todo o aparato terapêutico, ora, no mínimo esses paciente perderam a chance da cura, que os juristas franceses chamam de “Perde d’une chance”, retiram desses pacientes a oportunidade de serem tratados adequadamente.
Os gestores se explicam dizendo que não existe dinheiro para isso ou para aquilo, que a culpa é dos médicos que não cumprem a sua carga horária, esquecendo que a saúde pública e a educação são o mínimo existencial.
A sociedade precisa despertar e reagir a essa banalização do mal na saúde, o famoso episódio do “fio de aço” foi apenas o primeiro grito de indignação, não devemos perder essa capacidade de protestar contra a banalização do mal, e lembrarmos que quando morre um homem a humanidade fica menor, se olvidarmos isso nos tornaremos todos um pouco de Eichmann.
Dr. Jeancarlo Fernandes Cavalcante, 40 anos, é Cirurgião de Tórax, Titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Torácica (SBCT), Mestre e Doutor em Ciências da Saúde, Professor Adjunto da UFRN, Palestrante, fluente em inglês, francês e espanhol.
Atualmente é Conselheiro Federal Suplente do CFM (Conselho Federal de Medicina).
Exerceu a 2ª Vice-Presidência do CRM-RN na Gestão 2008-2011 e a Corregedoria Adjunta na Gestão 2005-2008.
Foi eleito para o mandato 2011-2013.
É um dos presidentes de CRM mais jovem do Brasil.