“Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se
abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis”
Graciliano Ramos
Graciliano Ramos (1892-1953) foi um homem excepcional. Renomado escritor alagoano, Prefeito da cidade de Palmeira dos Índios por dois anos, encaminhou ao então Governador, em decorrência do cargo, relatório de prestação de contas sobre o exercício de 1929, bastante divulgado na internet, reconhecido como peça literária de alta qualidade e, além disto, exemplo a ser seguido até hoje pelos administradores da coisa pública, em razão da clareza, sensatez, coragem e retidão que o texto denota. Quem desejar acessar a peça, basta consultar http://alagoasreal.blogspot.com.br/2013/02/graciliano-ramos-presta-contas-do.html .
Logo de início, o então gestor revela, já naquela época, situação que se repete até os dias atuais: a exiguidade dos recursos disponíveis, o que impõe ao administrador público adoção de postura econômica na aplicação dos recursos compulsoriamente retirados da sociedade, além da contínua avaliação da relação custo/benefício nas despesas realizadas, haja vista a tendência de crescente demanda por bens e serviços públicos.
Referida perspectiva dá ensejo, por um lado, a constante busca de novas fontes de financiamento, e por outro, a análises críticas em relação ao uso dado aos recursos, sendo esta invariavelmente mais contundente quando se examina a qualidade das aplicações, principalmente quando os serviços públicos apresentam baixo nível de satisfação. Exemplo desta percepção, revelando-se com maior frequência em face da maior relevância e alcance social, encontra-se nas políticas públicas voltadas para educação e ações de saúde.
Impossível não contextualizar a realidade atual. No caso da educação – a despeito de boas iniciativas governamentais que melhoraram significativamente os indicadores da área e permitiram novos acessos aos serviços, a exemplo do FUNDEB, FIES, PROUNI, fornecimento de livros didáticos, transporte escolar, alfabetização de adultos e outros programas – basta citar, na comprovação das deficiências existentes, os inúmeros e conhecidos casos de “escolas” estabelecidas em ambiente totalmente desprovido das mínimas condições de funcionamento espalhadas pelo país, especialmente no norte e nordeste – sem água potável, sem professores suficientes, muito menos cadeiras, às vezes até sem paredes. Na verdade, sem eira, nem beira. E são muitas, infelizmente (17,8 mil sem energia elétrica e 63% sem bibliotecas, segundo relatório mundial denominado “Educação para Todos”, da UNESCO). É de causar espanto ao cidadão preocupado e comprometido com o desenvolvimento social e com a melhoria das condições de vida da população.
Voltando a Graciliano Ramos e sua prestação de contas – foco principal destes breves comentários – verifica-se que demonstrou também imediata preocupação “em estabelecer alguma ordem na Administração”, e o fez afastando os funcionários que faziam política e os que nada faziam. Difícil dizer qual deles é mais pernicioso em uma gestão pública, se os primeiros – por não observarem a impessoalidade e o interesse público – ou os que não fazem nada, não sabem nada, não contribuem com nada.
Realmente, conforme percebido pelo então gestor púlico, “há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal”, ou prefere não compreender. Este é um traço da cultura administrativa que teima em resistir. Cabe reconhecer que, quando se trata da Administração Pública, não deve haver espaço para clientelismo, fisiologismo, paternalismo ou outras práticas semelhantes. Estes conceitos devem ser substituídos pelo profissionalismo, planejamento, isenção, mérito, compromisso com a eficiência, legalidade e moralidade, nos exatos termos definidos no art. 37 da Carta Republicana. Somente assim se consegue honrar o mandato deferido nas urnas.
Graciliano Ramos demonstrou ainda, além da qualidade literária, preocupação com coisas simples, mas essenciais em qualquer gestão, reveladas pelas seguintes práticas: adequação das despesas às receitas, que hoje denominamos equilíbrio fiscal; obediência ao orçamento aprovado, em razão da preocupação com a legalidade; cuidado com os serviços básicos – iluminação, limpeza, legislação, obras realmente necessárias, etc – comprovando o bom senso na gestão; eficiência da administração, através da eliminação de desperdícios; impessoalidade; razoabilidade na aplicação dos recursos; atenção com a economicidade. Poder-se-ia até resumir estas qualidades em um só conceito: moralidade administrativa.
Além disto, cabe apontar, como qualidades humanas: humildade (“Todos os meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca”), autocrítica (“Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos”), responsabilidade e honestidade (“…em todo caso, transformando-o [o dinheiro do povo] em pedra, cal, cimento, etc, sempre procedo melhor que se distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados”).
Vale a pena ler. E que sirva de exemplo a todos nós, fiscais da aplicação dos recursos públicos, cidadãos, gestores, sociedade organizada, no sentido de mostrar que sempre é possível melhorar, mudar velhos hábitos, especialmente a cultura organizacional pública ultrapassada, que não contribui para a melhoria, eficiência, efetividade e eficácia dos serviços públicos. Evitemos, pois, colocar “curvas” onde só cabem “retas”.
* Francisco Evanildo de Carvalho, Auditor do TCE/SE.
(Artigo publicado na Revista do TCE, edição número 51)