Gilberto Velazco Serrano
É falsa a ideia de que a medicina em Cuba é boa, diz o médico exilado na Flórida. Além da formação ser péssima, nos hospitais falta tudo. Texto: Pedro Barros Costa
Quando entrou na faculdade de medicina, percebeu a contradição entre o que o regime ensinava e o que ele via nos hospitais. Gilberto Velazco Serrano, de 32 anos, critica os cursos de medicina em Cuba e a forma como os médicos são tratados. Também ataca a exportação de médicos e afirma que, por exemplo, a cirurgia de cataratas, que levou a Cuba centenas de portugueses, é uma operação para manter o mito da saúde de qualidade na ilha. Obrigado a participar numa missão na Bolívia, em 2006, fugiu primeiro para o Brasil. Depois foi para Miami, nos Estados Unidos - onde agora estuda para conseguir voltar a exercer medicina. Conversa ao telefone entre Lisboa e Miami.
Como foi o seu curso de medicina em Cuba?
A formação é muito má. Os livros entregues pela universidade eram velhos, com páginas perdidas, de pessoas de 1980, 1995. Estavam desatualizados de novas teorias médicas, novos tratamentos. Tínhamos algum trabalho para conseguir livros internacionais, que não eram dados pela universidade, para conseguir atualizar a informação.
O curso só tinha teoria. Não havia outros meios?
Parto em havana em 1989 |
Nos hospitais, não tínhamos reagentes para fazer testes de glicernia, não tínhamos raios X para fazer uma radiografia ao tórax, não tínhamos remédios. As farmácias estavam vazias, parecia que estávamos em guerra. Não havia alimentação para os doentes, tínhamos de dizer às famílias para trazer. As casas de banho ficavam sem água, os hospitais estavam sujos e cheios de ratos. Estudávamos a teoria toda, mas a realidade é que não conseguíamos fazer o nosso trabalho,
Não havia condições nenhumas para trabalhar?
Depois de começarem a carreira, os médicos tinham um salário de escravo: 25 dólares (19 euros).Não era só para médicos, era para toda a população. O médico cubano é propriedade do Governo. Não tem direito a viajar, a não ser que seja obrigado a trabalhar numa colaboração médica. Diz também que havia doutrinação política É uma lavagem ao cérebro feita pelo Governo. As crianças em Cuba estão tão politizadas que só querem ser corno Che Guevara. como Fidel Castro. Na universidade tínhamos uma cadeira chamada Preparação Militar. Ficávamos fora dois meses, a aprender a disparar. a rastejar, a usar camuflagem de guerra. Supostamente, éramos uma ilha que seria invadida pelo Imperialismo.
O ambiente na universidade era de contestação ou de aceitação do regime?
Muitos jovens não gostavam do regime. Dos colegas que se formaram comigo. muitos fugiram e a maior parte esta nos Estados Unidos Mesmo com toda a outra ideologia, o Governo não conseguia convencer as pessoas das novas gerações a trabalhar como escravas.
Há um regulamento disciplinar dos médicos, O que são proibidos de fazer?
Fora de Cuba, tentam controlar a liberdade de expressão. Se o médico está numa missão internacional, não pode falar com a imprensa sem autorização. Não pode sair do lugar onde está nem depois das 18h. Não tem o direito de enviar informação para Cuba sobre o seu estado de saúde. Não pode ter relacionamentos amorosos com pessoas locais, a não ser que estejam de acordo com a ideologia revolucionária. A pena é a expulsão da missão e ser considerado um traidor.
Os médicos são obrigados a ir nessas missões? São obrigados, como gado, a participar. O Governo prepara as pessoas. Enquanto decorrem as conversações com governos internacionais, os médicos entram num curso de preparação ideologica e médica. São forçados a entrar naquele projeto.
Como foi a sua missão na Bolívia
Foi uma experiência horrorosa. Fui supostamente para ajudar vítimas de inundações. Quando cheguei, percebi que não chovia há mais de três meses naquela região, em Santa Cruz. Fomos enganados. íamos ajudar três meses e disseram-nos que tínhamos de ficar dois anos. Tivemos de dormir com pacientes tuberculosos no hospital. As nossas consultas eram na rua.
. Eram vigiados por militares?
São paramilitares que viajam com as brigadas para dizer ao médico o que fazer, Ternos de ligar todos os dias à tarde para fazer um relatório para provar que não fugimos. Eles ficavam em mansões, com ar condicionado. Tinham um quarto cheio de armas e malas cheias de dinheiro.
Diz que os médicos cubanos são quase corno curandeiros. Porquê?
Quando uma pessoa chega a uma clínica, o médico faz perguntas e uma previsão de diagnóstico. Aí vem o problema: não há meios para confirmar esse diagnostico. Não há raios X, as TAC são um luxo. Ajuntar a isso faltarn medicamentos. O médico torna-se um curandeiro. Diz ao doente: "Eu imagino que você tenha isso, mas como não tenho raios X nem mais nada, você vai tomar um chá, um sumo, alimentar-se melhor." E medicina de curandeiro.
É apenas por falta de investimento?
O Governo cubano tem duas políticas de saúde: uma para o seu povo, totalmente falida, que oferece uma saúde péssima, e uma que é a da propaganda internacional. Em Cuba, há uma epidemia de cólera, uma doença de extrema pobreza. Dá urna ideia da falta de infra-estruturas de saneamento e de médicos. Na outra politica, oferecem ajuda a muitos países. É tudo urna farsa. Não se percebe como é que aquela ditadura trata tão mal os seus cidadãos e oferece médicos para o exterior.
Como é que os estrangeiros que vão a Cuba para tratamento são recebidos?
Tém garantido tudo o que o povo de Cuba não tem: remédios, um certo grau de tecnologia, os melhores médicos - que também são escravizados. Tudo para que as pessoas que viajam para Cuba fiquem agradecidas à revolução e ao sistema de Fidel Castro. Num hospital em Cuba, essas pessoas são atendidas em pisos onde não estão os cidadãos cubanos. Depois voltam aos seus países e dizem: "Como é boa a medicina cubana!" É tudo uma grande mentira.
Há muitas pessoas que vão a Cuba lazer tratamentos oftalmológicos e o regime dá muita importância a esses tratamentos,Porquê?
O regime cubano sabe que a cirurgia de cataratas é muito simples, mas tem um efeito psicológico muito grande, na pessoa e na sua família. Depois da operação, essa pessoa volta á vida normal. A familia. que tinha de ir com o doente ao médico e ajudar na situação, fica também agradecida.O efeito psicológico a favor do regime fica muito mais barato.
Os médicos cubanos estão um pouco por todo o mundo. Representam afinal um risco?
Sim, um risco enorme, sobretudo dos médicos cubanos que não tenham passado num exame de revalidação do diploma médico nos países onde atuam ( Em Portugal. tem de passar em três testes numa faculdade de Medicina para obter a equivalência.
O que pensa de Fidel Castro?
Criou um grande mito. E gastou todos os recursos de urna nação para um criar um homem novo, um novo sistema que estaria do lado dos mais pobres. So que o mito gerou um sistema que não produz nada, uma economia destruida, um sistema de saúde horrivel. é o culpado da fuga de milhões de cidadãos
Decidiu fugir para o Brasil. Como é que conseguiu? Os paramilitares foram à região onde me encontrava e iniciaram uma caça ao homem. Mas eu já tinha pedido asilo político ao Brasil através da Polícia Federal. Pedi um refúgio permanente, mas foi-me negado. Há uma aproximação do Governo do Brasil e á ditadura de Cuba e fui vítima disso. Os EUA aprovaram e pude viajar e reunir- me com a minha família
A sua familia sofreu represálias em Cuba?
Eles têm um programa para aterrorizar as familias de médicos que ficam fora. Proíbem famíias inteiras de sair de Cuba durante três anos depois da decisão do médico de desertar. Tentam assim controlar a deserção de médicos. Os médicos que fujam perdem o direito de voltar ao país por oito anos. A minha familia ficou parada em Havana três anos por causa da minha decisão.
Está novamente a estudar medicina. Como é a sua vida nos Estados Unidos?
Trabalhei numa companhia de seguros de saúde até conseguir começar os estudos para a revalidação do diploma. Temos de fazer três testes para a revalidação. Planejo o primeiro dentro de três a seis meses. Estou numa leitura de temas médicos para entrar na Universidade de Kaplan, que tem um curso acelerado de preparação para esses testes.
Tem algum apoio do Governo norte-americano?
Tenho a família: o meu pai, os meus avós, os meus tios. Consegui tirá-los da ditadura. Eles moram aqui e sustentam-me. Trabalhei durante cinco anos e ajudei-os muito para se acomodarem nos Estados Unidos. Agora estão a fazer a parte deles.
Gostaria de voltar a Cuba e exercer medicina?
Primeiro, o Governo teria de eliminar a minha proibição de viajar para Cuba durante oito anos, Se Cuba fosse uma democracia e não uma farsa, gostaria de voltar ao meu país de forma definitiva.
Arrepende-se de ter escolhido esta profissão?
Não. Sempre sonhei ser médico, ajudar as pessoas necessitadas. Não fico arrependido porque estou ao serviço de pessoas que precisam de atenção. Não importa se não consigo praticar medicina em Cuba porque o Governo escraviza os seus médicos. Estou a tentar esse sonho de praticar medicina num país livre Vai ser o meu sonho até ao Ultimo dia da minha vida.
Editado
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Do original e o blog ALAGOAS REAL
Fonte:revista Sábado em circulação em Portugal 12 de setembro de 2013