A vacina contra meningite B de Cuba, apontada em ensaios oficiais da OMS como ineficaz para crianças de menos de 4 anos (entre as quais a doença é mais prevalente e grave), continua registrada e vem sendo adquirida por alguns Estados e municípios.(Isaias Raw em artigo de 1998)
Isaias Raw |
A produção de vacinas no Brasil
Caminhamos para a auto-suficiência em vacinas; os problemas são o preconceito e a pressão dos
vendedores
Em 1985, o Ministério da Saúde analisou soros (antiofídicos e outros) produzidos por institutos oficiais e empresas privadas, constatando que eram, na maioria, impróprios para o uso humano. Lançou o Programa Nacional de Auto-Suficiência, que investiu em vários institutos, visando a produção dos soros (que não podiam ser importados) e das vacinas indispensáveis para o seu programa de imunização.
Esse programa, que tem tido continuidade, mais do que simplesmente garantir a produção de vacinas, desencadeou no Butantan e na Fundação Oswaldo Cruz um esforço de desenvolvimento científico e tecnológico importante, que não ocorreria se não pudéssemos usar a tecnologia para produção.
O nível atingido pelo Butantan já mereceu congratulações da diretoria de vacinas da Organização Mundial da Saúde, segundo a qual o instituto terá uma posição de liderança no século 21. Na crise da qualidade da vacina contra tétano, difteria e coqueluche, o produto do Butantan mostrou uma qualidade maior que a de todos os importados, e a inspeção da OMS reconhece que atingimos os padrões norte-americanos.
Quando iniciamos o desenvolvimento da vacina contra hepatite B, o preço de atacado internacional era de US$ 8 por dose (são necessárias três doses). Hoje, com a entrada do Butantan, a vacina nos é oferecida a US$ 0,80.
O mercado brasileiro é o mais importante do mundo. Pode-se aplicar a vacina contra hepatite B em recém-nascidos, segmento em que a doença é muito grave; seriam cerca de 15 milhões de doses por ano. Poderíamos incluir populações de alto risco, como profissionais da saúde, drogados e hemofílicos, e regiões do Amazonas, do Espírito Santo e de Santa Catarina. Pode-se até pensar em imunizar todos os menores de 14 ou 18 anos; basta desviar toda a verba disponível para esse fim. Isso, claro, cria um mercado de bilhões, que os fabricantes não querem perder.
O mesmo ocorre com hemófilos B, outra vacina eficaz, que pode ser administrada em recém-nascidos ou em metade do Brasil. Florianópolis já pagou US$ 13 por vacinas, mas, para evitar a perda do mercado, já oferecem a US$ 2. Ao ser oferecido o produto pronto, ou pronto para envasar (como ocorre com a vacina antipólio), bloqueiam-se o desenvolvimento e a produção e se garante a dependência, criando uma conta de muitos milhões de dólares.
Enquanto aguardamos o registro da vacina contra hepatite do Butantan (que obedece a todos os requisitos da OMS e tem inocuidade e eficácia provadas, até com meia dose), vacinas importadas da Coréia e de Cuba foram registradas. A vacina contra meningite B de Cuba, apontada em ensaios oficiais da OMS como ineficaz para crianças de menos de 4 anos (entre as quais a doença é mais prevalente e grave), continua registrada e vem sendo adquirida por alguns Estados e municípios.
Apesar da pressão, caminhamos rapidamente para a auto-suficiência. Estamos perto de atingi-la em sarampo. Já a atingimos nas vacinas tríplice e contra tuberculose e raiva. A partir de 1999, podemos produzir 40 milhões de doses de vacina contra hepatite B. Devemos ter novas vacinas contra coqueluche, raiva e rubéola e estaremos testando muitas outras combinações.
Os problemas que estamos enfrentando são o preconceito ("o importado é que é bom") e a pressão dos vendedores. O mesmo ocorre com derivados de sangue: desprezamos o plasma de cerca de 2 milhões de doações e gastamos cerca de R$ 200 milhões por ano, o que daria para equipar sete das três fábricas de processamento de que precisamos. É até possível que tenhamos de enfrentar ataques pessoais, como aquele que "queimou um arquivo" em Brasília, há dois anos, sem que tenham sido apontados os responsáveis.
Isaias Raw, 71, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e presidente da Fundação Butantan. Foi diretor do Instituto Butantan (1991-97) e professor visitante do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (1971-73) e da Universidade Harvard (1973-74), nos EUA.