A África Ocidental está enfrentando um novo surto de ebola, o maior em quase quatro décadas de história da doença. As proporções têm chamado a atenção das autoridades e órgãos de saúde em todo o mundo. O mais recente boletim da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre todo o oeste da África, divulgado na última quarta-feira (7/8), aponta 932 mortos desde o começo do ano, com 1.711 casos confirmados de ebola, sobretudo na Guiné (363), Libéria (282) e Serra Leoa (286). No mesmo dia, a Libéria decretou estado de emergência.
A OMS, que realizou um encontro de dois dias de um comitê emergencial de especialistas para decidir a resposta internacional ao surto, declarou emergência sanitária internacional na última sexta-feira (8/8). Com isso, os países afetados pela epidemia vão ter que adotar, entre outras medidas, exames para detectar o vírus em aeroportos, portos e postos de fronteira, em todas as pessoas que apresentarem febre e outros sintomas semelhantes aos do ebola. O Brasil, até o momento do fechamento desta matéria, segue sem casos suspeitos, de acordo com o Ministério da Saúde. O órgão lançou um informe técnico sobre o ebola.
A Agência Fiocruz de Notícias convidou a médica infectologista Otília Lupi, do Laboratório de Doenças Febris Agudas do Instituto Nacional de Infectologia (INI/Fiocruz), para esclarecer as principais dúvidas sobre o ebola. Entre outras informações, ela fala sobre sintomas, contágio e o risco de o Brasil desenvolver uma epidemia. Confira:
AFN: O que é o ebola?
Otília Lupi: O vírus ebola é um vírus que pertence à família dos filovírus. Sabemos hoje que existem cinco tipos de vírus Ebola, que varia na sua capacidade de causar doenças e na letalidade. O vírus foi descrito a partir de uma epidemia que aconteceu em 1976, com focos na região do Zaire (hoje República Democrática do Congo) e ao sul do Sudão e, até hoje, tem produzido vários surtos no continente africano. Esse vírus foi transmitido para seres humanos que tiveram contato com sangue, órgãos ou fluidos corporais de animais infectados, como chimpanzés, gorilas, morcegos-gigantes, antílopes e porcos-espinhos. Existem cinco espécies de vírus ebola (Zaire ebolavirus,Sudao ebolavirus, Bundibugyo ebolavirus, Reston ebolavirus e Tai Forest ebolavirus), sendo o Zaire ebolavirus o que apresenta a maior letalidade, geralmente acima de 60% dos casos diagnosticados.
AFN: Quais os principais sinais e sintomas?
Lupi: O ebola causa febre hemorrágica. No início, o paciente apresenta febre, dor de cabeça e mialgia, evoluindo posteriormente para vômitos e diarreia. A fase inicial é inespecífica, mas existe uma evolução relativamente rápida, em alguns pacientes, para a forma hemorrágica grave, na qual há falência múltipla dos órgãos. Também acontece um distúrbio que leva à Coagulação Intravascular Disseminada (CIVD), que ocasiona sangramentos na mucosa, no intestino e no útero. Geralmente, é uma evolução para a forma terminal da doença.
AFN: De que forma é transmitido?
Lupi: A transmissão só acontece após o aparecimento dos sintomas e se dá por meio do contato direto com sangue, tecidos ou fluidos corporais de indivíduos e/ou animais infectados ou do contato com superfícies e objetos contaminados por esses fluídos. O vírus tem um período de incubação de 1 a 21 dias.
AFN: Existe forma mais ou menos grave de ebola?
Lupi: Para cada uma das cinco cepas, existe uma variação de letalidade. O surto que está acontecendo agora é causado pela cepa mais letal. Nas primeiras epidemias, a letalidade estava em torno de 90%. No surto atual, o número ainda é alto, entre 50 e 60%. No entanto, muitas pessoas desenvolvem uma forma mais branda da doença. É importante lembrar que a enfermidade está acontecendo em uma das regiões mais pobres do mundo. A capacidade de oferecer terapia de suporte ao paciente é muito precária, mesmo com toda a ajuda que tem recebido da OMS, Médicos Sem Fronteiras, etc. As estruturas montadas para a assistência não têm as mesmas condições de um hospital regular. A letalidade pode ser menor se o paciente for tratado em um centro com mais recursos.
AFN: O que é uma emergência de saúde pública internacional?
Lupi: Quando há um surto ou uma epidemia de uma doença, ou seja, quando a taxa de ocorrência é maior do que o previsto para a área restrita ou país e a proliferação exige uma reação global, a OMS decreta a necessidade de uma maior vigilância e implantação de medidas de controle ou prevenção.
AFN: Como são feitas as notificações para a OMS?
Lupi: No caso do ebola, há uma ocorrência de emergência de saúde pública. O Brasil é signatário do Regulamento Sanitário Internacional, coordenado pela OMS. Esse documento foi atualizado em 2005, pois claramente existia uma necessidade de os países compartilharem mais abertamente as informações sobre as doenças ou eventos que pudessem sair do controle internamente e extrapolar as fronteiras. Antigamente, só se preocupava com febre amarela e cólera. Hoje, o mundo todo está trabalhando dentro de uma lógica que alimenta o alimenta a GOARN (Global Outbreak Alert and Response Network), um sistema de vigilância global, de alerta e resposta.
A ideia é manter a OMS atualizada de tudo que está acontecendo. Por exemplo, se houver um rumor de caso suspeito de ebola no Brasil, a OMS contata o Centro de Informações Estratégicas em Vigilância em Saúde (Cievs), em Brasília, que será responsável por checar essa informação e responder à OMS. Antes, o Cievs era um órgão único no Brasil, mas hoje esse sistema é descentralizado, então temos Cievs em quase todas as capitais do país. Essa rede já funciona para uma série de doenças que necessitam de uma resposta imediata. Além disso, temos no país um sistema de vigilância epidemiológica que tem mais de 30 anos de existência.
AFN: Há riscos reais de a epidemia chegar ao Brasil?
Lupi: Em março, o governo da Guiné comunicou à OMS alguns casos suspeitos de ebola. Nesse momento, a OMS informou ao mundo inteiro a possibilidade de um novo surto. Todos os países passaram a acompanhar os informes do site da OMS, que atualmente emite boletins quase diários sobre a evolução do surto. Por isso, o Brasil já está em alerta desde março. A possibilidade de o Brasil vir a ser, de fato, alcançado por esse surto depende da segunda etapa da epidemia. A primeira etapa é alguém estar na zona de risco, ter contato com o reservatório [nota: no Brasil, não há circulação natural do vírus ebola em animais silvestres, como em várias regiões da África] e trazer para o contato humano. A segunda é a transmissão entre humanos, a partir de secreções ou gotículas. É nessa etapa que corremos o risco teórico. Como o período de incubação pode ser relativamente longo, a pessoa pode dar a volta ao mundo algumas vezes, sem estar com os sintomas.
No Brasil, não há voos diretos para os países afetados. Para acontecer, seria preciso ser uma pessoa em trânsito ou um paciente em fuga, procurando assistência fora do seu local de origem. Se o ebola continuar restrito a Serra Leoa, Guiné e Libéria, nosso contato é pequeno, apesar de não ser zero. O risco real e potencial existe e toda pessoa que vier com febre de algum desses países será tratada como caso suspeito, segundo a definição da OMS. Para não ser considerado suspeito, o indivíduo tem que estar fora daquela região há mais de 21 dias. Dessa forma, haverá a verificação de seu histórico epidemiológico. Toda essa avaliação precisa ser feita tomando precauções para evitar casos secundários e a detecção de possíveis contactantes que precisam ser monitorados se a suspeita for sustentada.
Devido a estudos sobre a malária no INI (doença que tem uma dinâmica semelhante em relação à vigilância, mas não na transmissão), sabemos que 49% dos pacientes febris notificados no Brasil são oriundos da África e da Ásia, sendo a maior parte da Angola e de Moçambique. O trânsito entre o Brasil e estes países é maior porque há grandes empresas brasileiras funcionando nesses lugares, em especial de prospecção de minério e empreiteiras. No entanto, até o momento, o ebola não chegou a esses países.
AFN: O Brasil está preparado para tratar infecções ocasionadas pelo ebola?
Lupi: Nosso sistema de saúde é muito mais estruturado em relação aos países que estão em epidemia. A relação médico-paciente lá é de 1 para 10 mil pessoas, um número totalmente ineficiente e nós não temos isso no Brasil. Outro fator importante é a cultura local deles, que inclui práticas bem distintas das nossas. No primeiro surto, no Sudão, as seringas eram reutilizadas até 100 vezes no hospital, uma prática da década de 70, em uma região paupérrima do mundo. Mais de 50% dos casos foram relacionados a isso ou a profissionais de saúde que entraram em contato com os seus pacientes sem proteção. Se isso não tivesse ocorrido, o surto teria sido menor.
Na segunda epidemia, a transmissão esteve relacionada à prática funeral de preparo dos corpos pelos familiares, que os lavam com esvaziamento do conteúdo intestinal. Os agentes do CDC que foram para localidade perceberam que essa prática estava no centro da disseminação da doença e, com muita dificuldade, fizeram um acordo para que a população realizasse essa prática com toda segurança de contato. A epidemia reduziu depois dessa iniciativa, pois pararam de surgir casos secundários. Ainda assim, muitas famílias, devido à tradição, se vissem que o paciente ia morrer, acabavam pegando o corpo e enterrando em algum local sem comunicar a ninguém.
A cultura da caça e consumo de animais silvestres também possibilitou a disseminação da doença, estando provavelmente relacionada ao primeiro caso da atual epidemia também na África Ocidental. Muitas pessoas vivem da caça e da venda de carne nos mercados locais, sendo devido a isso que uma das primeiras medidas de controle foi interromper essa venda. No entanto, as pessoas que vivem dessa prática comercial acabaram cruzando a fronteira e levando o problema para a Libéria.
Nesse sentido, é bem claro que há vários hábitos locais que nossa cultura não preconiza e que influenciaram bastante a dinâmica da epidemia. Caso sejam confirmados casos no Brasil, o que devemos ter aqui é uma estrutura que esteja preparada para os eventuais óbitos, sepultamento imediato e, em alguns casos, incineração de material utilizado durante o tratamento. Nosso desafio é ser capaz de identificar o caso o mais rápido possível e instaurar as medidas de precaução rígidas e manuseio seguro dos dejetos e fluídos.
AFN: As fronteiras dos países afetados estão fechadas?
Lupi: A OMS recomenda que se evite viagens que possam ser adiadas, mas não fechou as fronteiras para esses países, ou seja, os voos não estão interrompidos. Mesmo que interrompa, a pessoa pode cruzar a fronteira “a pé” e pegar o avião em outro local. Por isso é importante conscientizar as pessoas sobre a doença e os sintomas para o controle.
O diferencial dessa epidemia atual é que ela está afetando uma zona urbana. Antes ela ocorreu em áreas remotas, em aldeias com menor possibilidade de trânsito de pessoas. É válido ressaltar que o fechamento de fronteiras é uma medida extrema e muito séria. Se lembrarmos do surto de Sars [Síndrome Respiratória Aguda Grave] na China, aparentemente, parecia que o país inteiro tinha sido afetado, mas foi apenas uma pequena província. A região sofreu muito com todo o fechamento em torno dela, mais do que pela própria doença. Existem artigos científicos publicados que indicam que o impacto financeiro matou muito mais que a própria enfermidade. Por isso, a OMS é tão cuidadosa em elevar o nível de alerta e realmente fechar as fronteiras, pois pode ser uma ação ineficaz que, no fundo, leva mais dano a uma população que de fato está precisando é de ajuda.
Com relação à ligação do Brasil com os países afetados, na verdade, a grande questão é a epidemia descer em direção a Nigéria, a Moçambique e a Angola, pois teremos mais riscos. Mas muito provavelmente isso não irá acontecer, pois está havendo uma grande mobilização internacional para o controle da epidemia.
AFN: Quem é responsável pelo controle de fronteiras no Brasil?
Lupi: O controle de fronteiras, portos e aeroportos no Brasil, é uma atribuição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Por causa de doenças como a malária, já existe todo um sistema de vigilância que estimula a chamada “busca passiva”, alertando o paciente a procurar o atendimento se achar que está doente. Os passageiros que vem de áreas endêmicas recebem um folder, por exemplo, com o aviso “febre pode ser malária” e o telefone de contato dos locais que fazem a observação.
No caso do ebola, ao contrário da maioria das viroses, o período de transmissibilidade da doença começa simultaneamente ao início da manifestação clínica. Por isso, dificilmente alguém vai conseguir viajar já doente. Isso torna mais fácil a identificação de casos por que é possível monitorar os indivíduos em risco e instaurar o isolamento no momento em que ele vier começar a ficar doente.
http://www.agencia.fiocruz.br/infectologista-da-fiocruz-esclarece-duvidas-sobre-epidemia-de-ebola-e-aborda-os-riscos-para-o-brasil