No início do século passado em plena l guerra mundial, uma epidemia devastadora matou 1/3 da população mundial. A gripe espanhola foi uma das maiores tragédias relacionadas a um problema de saúde na história da humanidade. Os hospitais nesta época ficavam abarrotados de pessoas com uma dificuldade imensa de disponibilizarem leitos para as pessoas que procuravam assistência. Os registros fotográficos deste período(figura 1) mostravam imensas enfermarias nos hospitais com acúmulo de pacientes recebendo tratamento de forma precária. Esses registros de imagem foram provavelmente os primeiros da história a mostrar hospitais superlotados e com imensa dificuldade de prestação de serviços de saúde adequados.
Enfermarias na primeira guerra mundial |
Neste período e até recentemente os hospitais e serviços de urgência superlotavam por causa de excesso de demanda. Em períodos de epidemias, grandes tragédias humanitárias(desastres naturais) e aumento súbito de procura por causas não naturais(guerras etc..) os serviços hospitalares muitas vezes são insuficientes e apresentam um quadro de superlotação que se resolve quando a causa do problema cessa. No entanto, nos últimos anos uma área específica dos hospitais tem apresentado de forma constante um acúmulo de pacientes acima da sua capacidade de resposta e que se caracteriza por uma internação hospitalar num local inadequado para o seu tratamento. Os serviços de urgência em quase todo o mundo têm apresentado dificuldades imensas de internar pacientes. Esse fenômeno tem aumentado nos últimos anos e tem se tornado um dos grandes desafios nos sistemas de saúde do mundo. Mas a natureza deste problema não é a mesma da que vimos na epidemia da gripe espanhola. A superlotação dos serviços de urgência é definida como uma situação temporária em que a demanda pelo serviço supera a capacidade de resposta do mesmo. Mas esta definição que explica bem o que acontece quando acontecimentos externos pressionam os serviços de urgência e os hospitais não explica bem o que estamos assistindo hoje e mostra que soluções importantes como por exemplo o aumento da cobertura da atenção primária não vai afetar esse problema no curto prazo .
Cada vez mais os serviços de urgência têm dificuldade de internar pacientes e com isto se tornam grandes enfermarias . A consequência disso tem sido uma demora cada vez maior na permanência de pacientes no próprio serviço de urgência no que os americanos chamam de tempo de “boarding”. No Brasil se tornou natural encontrar pacientes com dias de espera nos serviços de urgência, configurando uma situação dramática , infelizmente naturalizada.
Mas onde está a raiz deste problema? Estudos recentes demonstram que a principal causa desta situação não está mais nos serviços de urgência. Ela tem relação com problemas no fluxo de pacientes dentro do hospital. Óbvio que a pressão de entrada e a dificuldade de passagem dos pacientes pelo serviço de urgência pode piorar o quadro, mas o grande vilão da superlotação dos serviços de urgência na atualidade é a dificuldade de saída destes serviços de pacientes que precisam internar. Isso se deve muito mais a um problema de fluxo interno do hospital. Portanto, o serviço de urgência isoladamente não consegue resolver o problema de superlotação. A(s) solução(ões) está(ão) relacionada a processos de gestão dentro do hospital.
Modelo de atravessamento de um paciente pelo serviço de urgência |
Estudos recentes têm demonstrado que a superlotação não é um fenômeno sem consequências. Vários trabalhos publicados têm demonstrado um aumento de erros de procedimentos em serviços com este problema e pior, há uma correlação entre tempo de permanência internado no serviço de urgência e desfecho seja ele por aumento do tempo de permanência global, seja por aumento da mortalidade. Um estudo no Stony Brook , hospital de Nova York (Fillipatos & Evridilkl 2014) mostrou:
O tempo de boarding aumenta a mortalidade em até 2 vezes (à partir de 12 horas de permanência),
O tempo de permanência hospitalar aumenta de 4 a 7 dias numa correlação importante com o tempo de boarding no S.U.(quanto mais horas no serviceo de urgencia, mais dias internado no hospital)
Aumento de erros médicos (50% das causas de erros num hospital)
Tais fatos têm levado a alguns estudiosos (Peter Viccelio) a propor uma intolerância cada vez maior com o fenômeno da superlotação. Esse médico de Nova York (do Stony Brook)vem estudando esse fenômeno há mais de 10 anos e propôs a criação de protocolos para utilização de toda a estrutura hospitalar (“full capacity protocol”) incluindo corredores nas enfermarias. Estudos mostraram uma redução de mortalidade com estas atitudes, com melhoria da aceitação por parte de familiares e pacientes. Alguns destes estudos mostram que o tempo médio de permanência do paciente no corredor de uma enfermaria é de no máximo 2 horas, visto que a equipe acelera altas que estavam postergadas por motivos diversos.
Outro estudioso do fenômeno é o professor Eugene Litvak. Trata-se de um matemático ucraniano , com formação também em engenharia de sistemas que emigrou para os EUA e começou a estudar os fluxos hospitalares utilizando ferramentas como a teoria de filas. Litvak criou a teoria da variabilidade que propõe que os sistemas de serviços e seus processos de trabalho trabalham com variabilidades identificáveis e que estão no cerne da dificuldade de entregas de resultados. Uma variabilidade é chamada de natural e ela ocorre por causa da natureza dos serviços que lidam com pacientes diferentes, médicos com características distintas e afluxos em alguns serviços(o de urgência é um exemplo) imprevisíveis. A variabilidade natural exige dos gestores estratégias de gestão e ferramentas baseadas em estatísticas sofisticadas, como a própria teoria de fila , teoria de restrições e outras já usadas em outras áreas do conhecimento humano. Sem essa sofisticação fica mais difícil a gestão de fluxos dentro de um serviço de urgência ou de um hospital. O outro tipo de variabilidade proposto por Litvak é a variabilidade artificial, sendo essa como o nome indica relacionada a fatores pessoais das pessoas que executam o serviço. Ele propõe que essa variabilidade deve ser se possível eliminada(um bom exemplo é a marcação de cirurgias eletivas). Analisando os fluxos do hospital usando essas ferramentas e outras como o lean(ferramentas de eliminação de desperdícios e aceleração de fluxos) é possível eficientizar por exemplo o giro de leitos dentro de um hospital, já que há uma correlação forte entre taxa de ocupação hospitalar (acima de 90% é quase certo que ficarão pacientes internados num serviço de urgência) e superlotação do serviço de urgência.
Com base nestes estudos temos estabelecido estratégias vencedoras para redução da superlotação. 3 delas têm alto impacto:
Gestão de leitos e fluxos intra-hospitalares com altas previstas de preferencia até um horário pela manhã. Se as altas forem feitas sem um horário previsto , a entrada de novos pacientes fica comprometida(os hotéis já sabem disso há muitos anos)
Distribuição das cirurgias eletivas por toda a semana e horários estendidos. Os hospitais funcionam no que chamamos de regime 9/3 ou na melhor das hipóteses 9/5, que significa que funcionam no máximo 9 horas por dia e 3 a 5 dias por semana. Em geral os 3 primeiros dias da semana são os dias que têm mais cirurgias eletivas e mais afluxo de pacientes no serviço de urgência. A conta não fecha. É preciso redistribuir os pacientes eletivos.
Protocolo de contingência, quando a situação do serviço de urgência estiver de alto risco. Para isso é preciso medir. Medidas que foram adotadas no Brasil até recentemente funcionam como olhar para o retrovisor, isto é, não adianta eu perceber que as pessoas estão há mais de 24 horas internadas no serviço de urgência. Temos que medir o fenômeno quando ele ainda não ocorreu, visto que a superlotação é um processo dinâmico e a ativação de processos de contingência devem acompanhar essas variações. Existem alguns scores validados sendo o NEDOCS e o METTS os dois mais conhecidos. A ativação do plano de contingência pode se dar em cima de um valor do score(ou mais valores), sendo por exemplo que o NEDOCS considera um score acima de 180 como de altíssimo risco aos pacientes necessitando da ativação imediata do plano. Os planos fazem parte de uma estratégia inicial de intervenção em serviços que estão superlotados e ajudam a envolver o hospital como um todo no problema.
Outras medidas têm menor impacto, mas podem ser importantes, como o uso de hospitalistas para avaliar pacientes internados no serviço de urgência, unidades de internação rápida(short stay units) , unidades de decisão clínica (udc) etc.. Medidas como fechamento do serviço de urgência , ou aumento físico do mesmo são paliativas, visto que a principal causa está dentro dos hospitais. Resumidamente podemos elencar e quebrar alguns mitos:
A superlotação é hoje um fenômeno de dificuldade de saída nos serviços de urgência por causa de problemas nos fluxos internos dos hospitais.
Não culpe a atenção primária pela sua superlotação. A solução está próxima a você.
Aprenda a medir corretamente se o serviço está superlotado ou superlotando. Se o problema for por excesso de demanda ele é mais fácil de ser resolvido, se for (como são a maioria) por dificuldade de saída a solução é mais complexa.
Cada vez mais os hospitais vão ter que gerenciar seus fluxos internos e reduzir suas variações. Este é um setor que vai crescer nos próximos anos e envolve todas as atividades dos hospitais.
Aprenda com os hotéis como gerenciar suas altas.
Pense em soluções fora da caixa. Entenda o problema , o assuma e enfrente.
Hospitais são parecidos com aviões. Ocupações baixas o tornam inviável economicamente, ocupações altas provocam overbooking, insatisfação e pior , como demonstrado recentemente, aumenta erros e desfechos fatais. A gestão desse complexo que para sobreviver trafega numa taxa de ocupação próxima do perigo não é para amadores.
Continuar assistindo a esse problema não pode ser uma solução. É no mínimo uma omissão coletiva.
O triste é que vivemos hoje no Brasil uma situação que considero muito grave. A naturalização da superlotação em quase todos os grandes serviços de urgência no país com certeza está aumentando a mortalidade em situações evitáveis. É necessário ao meu ver uma legislação mais rigorosa e utilização de metodologias com alguma evidência para que possamos melhorar esse flagelo nacional.
Welfane Cordeiro Junior
Gestão avançada usando lean healthcare e teoria de filas e restrições na Excellence Health Solutions
Atual
Johnson & Johnson,
Hospital Sírio-Libanês,
Grupo Hospitalar Conceição
Anterior
Hospital Sírio-Libanês,
Hospital Madre Tereza,
Unimed Londrina
Algumas sugestões de leituras:
Managing patient flow in hospitals- Edited by Eugene Litvak
Emergency department management –ACEP-Robert W. Strauss and Thom Mayer
Hardwiring flow- Thom Mayer and Kirk Jensen.