Gilmar Mendes Ministro STF |
"O diabo preparou-nos um cocktail"
Gilmar Mendes Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil
LUISA MEIRELES - Portugal
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil (juiz-conselheiro) Gilmar Mendes é uma figura controversa, amado pela direita, odiado pela esquerda. Decisivo no impeachment de Dilma Rousseff, votou a favor do habeas corpos apresentado por Lula para impedira sua prisão. Juiz de inegável importância política, condena a judicialização da política no seu país, onde vê na "desinstitucionalização do sistema" o grande perigo. Participou em Lisboa num Fórum luso-brasileiro, organizado pelo instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito.
Esperava a decisão do STF contra o habeas corpos de Lula?
De certa forma, embora pareça uma não-decisão. Uma das juízas, Rosa Weber, disse que votou contra porque o que estava em causa era o habeas corpus. Na ação declaratória, que está pronta para ser julgada, poderá votar de modo diferente, mantendo a posição de espera pelo trânsito em julgado. Mas é com certeza uma derrota jurídica e política do ex-Presidente Lula. independentemente da decisão, em princípio ele já está inelegível, com base na "lei da ficha limpa", relativa a candidatos condenados criminalmente em segunda instância por crimes contra a administração pública. A menos que obtenha uma suspensão.
Mas entretanto Lula irá para a prisão?
Em princípio sim, se o tribunal de Porto Alegre o determinar.
O PT afirmou que foi um dia trágico para a democracia e o Brasil
Eu Tenho a impressão de que não foi um dia feliz, por conta de todos os condimentos, processuais e não só. A ironia é que dos 11 juízes do STF, oito foram indicados pelo PT, incluindo Weber, nomeada pela ex-Presidente Dilma. Os votos que faltaram são todos do PT. O ministro Marco Aurélio de Mello foi indicado pelo Presidente Collor de Melo, Celso de Melo por Sarney, eu por Fernando Henrique Cardoso.
A partir desta decisão, outros políticos, mesmo o Presidente Temer, podem estar em risco de prisão?
Em princípio, alguns políticos importantes estão submetidos à jurisdição do Supremo e já correm risco de prisão com a condenação em instância única. Mas se vierem a perder o mandato e forem submetidos a duplo grau [segunda instância], serão submetidos às mesmas regras.
O STF é acusado de semear a insegurança jurídica.
Há muita confusão interpretativa tendo em vista o condimento político que todas as questões assumem. Quando debatemos o assunto em 2016, a premissa de muitos, incluindo a minha, era a de que estávamos apenas a permitir a prisão em caso de condenação em segunda instância. Era uma possibilidade. A leitura que se fez do ambiente político jurídico geral foi a de que era uma determinação, por isso recomeçamos a discutir o tema. O ambiente está muito contaminado — procuradores, juízes, abaixo-assinados — e não podemos esquecer que isto também é uma luta de poder para procuradores e juízes de primeira instância. A minha posição é que devemos exigir a ida até pelo menos ao STJ.
Na véspera da decisão houve uma tomada de posição do comandante do Exército. Existe perigo de intervencionismo militar?
Não acredito. Conheço e respeito o general Villas Boas e tenho a impressão de que a sua manifestação tem que ver com tudo o que está a ocorrer no ambiente político nacional, com Jair Bolsonaro, generais que foram recentemente para a reserva e que têm criticado a classe política. Não creio que se cogite numa intervenção, mas a sua fala não foi feliz.Não há ambiente para uma intervenção militar
Que seria uma ditadura.
Não faria nenhum sentido. Pelo contrário, o Exército e as Forças Armadas como um todo, nesses 30 anos de Constituição, têm-se comportado dentro da lei e da ordem.
Está preocupado?
É um quadro extremamente preocupante. A operação 'Lava Jato', que atingiu toda a classe política, vai ter repercussão no processo eleitoral de outubro. Vivemos uma situação singular. Na campanha pontificam de um lado Lula e do outro Bolsonaro, figura que levanta receios do ponto de vista democrático e do Estado de direito. A decisão do STF define a questão da candidatura Lula e terá efeito nas alianças que vão resultar. Defendo que temos de preservar a política, porque é o único espaço para viabilizar o funcionamento da democracia. A crise gerou na população um sentimento de descrença, de procura do "novo", que ninguém sabe o que é depois deste abalo sísmico. Isto num quadro eleitoral, é como se o diabo nos tivesse preparado um cocktail.
Que já foi tentado noutros países...
e não deu certo. Em geral, não têm propostas para o dia seguinte. A judicialização é extremamente negativa mas decorreu do debilitamento completo da classe política
O poder judicial, de qualquer forma, está colocado perante a situação de influenciar diretamente o percurso político do Brasil.
O PT tem tentado manter a candidatura de Lula tanto quanto possível, apostando numa eventual transferência de voto. No STF só decidimos a possibilidade imediata ou não da prisão. É uma decisão extremamente dramática, independentemente da repercussão jurídica. O problema do trânsito em julgado no Brasil é que esse recurso foi utilizado para postergar às vezes ad infinitum as sentenças. Esse modelo exauriu-se. O que temos de discutir agora é a possibilidade de um tipo de prisão chamado provisória a partir do segundo grau, que, em alguns casos, é mais ou menos óbvio, como o dos crimes que tendem a repetir-se.
Não é o caso de Lula...
Não. Aí vem o problema da judicialização da política.
De fora, tem-se a sensação de que o Brasil já está, na prática, em guerra civil, com apelos à contestação e mesmo insurreição, agitação militar...
Temos de separar as coisas. A questão do Rio de Janeiro, onde se insere o assassínio da Marielle Franco [militante dos direitos humanos] é muito peculiar, tem que ver com a questão de segurança, que sempre foi tratada com negligência. Nas eleições municipais de 2016, para colocarmos urnas na favela da Maré, precisamos de blindados da Marinha, porque é um território ocupado pelas milícias. A intervenção federal é uma tentativa de resgate por parte do Estado. No Rio de Janeiro já há um estado excecional, essa chamada guerra civil é quotidiana. As pessoas estão fugindo disso, não tem que ver com questão política, mas com segurança pública, com envolvimento de segmentos políticos.
É resultado da judicialização da politica?
Houve excessos. O que se revelou na 'Lava Jato', em rigor, é uma grande contribuição para a reconstrução da democracia no Brasil de modo saudável. Ninguém podia imaginar o nível de abusos da forma organizada, estrutural, que se revelou. Que a maior empresa nacional, a Petrobras, fazia dos contratos um modo de financiamento da classe política e que a chamada política comercial brasileira seria feita também nessas bases, com grandes empresas a influenciar até países vizinhos. Depois de um certo tempo levou à derrocada do sistema político e a um protagonismo às vezes excessivo dos procuradores e juízes. Passaram a imaginar um projeto que não sei bem o que seria, mas que alguns chamam partido do judiciário, ou da polícia.
"HÁ UM MANIQUEÍSMO FORTE. TEMOS DE DIZER QUAIS SÃO OS LIMITES. AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS GERAIS SÃO MAL VISTAS. É O OVO DA SERPENTE"
O que quer dizer?
Esse tema nunca foi tratado de forma efetiva pelo judiciário, é uma situação grave em si mesma que foi negligenciada. Outra questão é saber como a população vai reagir em função de uma determinada decisão. Temos de avaliar. No Brasil, as pessoas vivem uma sede de vingança, comemoram as prisões de qualquer político e se houver abusos tanto faz, acham que foi um "pequeno erro". É esse o sistema do chamado Partido da Justiça: se alguém tem prisão provisória pedida é porque é culpado. Há um maniqueísmo muito forte e temos de temperar esse ambiente e dizer quais são os limites. Conceder um habeas corpus hoje é muito difícil para a própria justiça, porque é altamente impopular. As próprias garantias constitucionais gerais são mal vistas. Isto é o ovo da serpente. Temos de tentar manter um mínimo de racionalidade.
"A CRISE GEROU NA POPULAÇÃO UM SENTIMENTO DE DESCRENÇA, DE PROCURA DO 'NOVO', QUE NINGUÉM SABE O QUE É DEPOIS DESTE ABALO SÍSMICO"
Qual é o grande perigo?
É a desinstitucionalização do sistema, todos os segmentos se desestruturaram e temos de passar por um processo eleitoral com riscos. O grande perigo é o de mensagens eleitorais autoritárias ou de tendências totalitárias. Diante do novo que se procurava, surgiu afinal o muito velho e extremamente perigoso. Não nos devemos afastar dos alinhamentos do Estado de direito.
Quando vê Bolsonaro em segundo lugar nas sondagens, é a população ansiando por segurança?
São mensagens, por exemplo, de segurança pública. Alguém aparece e diz que a resposta é liberar as armas para todos. Armar a população num país com tal desestruturação significa ter bandos. Para problemas complexos, uma resposta simples, mas errada. Os costumes são outro tema que divide, questões como o casamento de homossexuais ou o aborto. Ocupou um vácuo na segurança pública e nos costumes numa sociedade que é conservadora. Não se podem medir os parâmetros do Brasil profundo pelos da Avenida Paulista ou da Avenida Atlântica. Agora a moda é os políticos dizerem que não são políticos. Quem se encaixar nesse figurino já tem alguns pontos.
É possível fazer eleições sem mudar a lei eleitoral que todos reconhecem como desatualizada?
Não temos alternativa. Estamos num processo de reformas e elas não se conseguem fazer de imediato. Até à eleição do Presidente Collor [1989] as campanhas tinham proibição de doação das empresas, mas todos sabiam que o sistema corria pela chamada "caixa 2". Quando se viu o dinheiro
todo que Collor conseguiu reunir concorrendo contra Lula, precisamente, os políticos mudaram a legislação para permitir a doação das empresas. Em 2015 decidimos que a doação de empresa seria inconstitucional, baniu-se de novo. Nas eleições municipais de 2016, tivemos 730 mil doadores (pode doar-se até 10% da renda) mas 350 mil eram de pessoas sem capacidade de doar, os "laranjas".
São os "cabeças de turco"
É, o sistema encontrou uma saída. No modelo que temos hoje, com 28 partidos no Congresso, é impossível controlar. É uma sopa de letras. Eles acoplam-se às candidaturas maioritárias, porque a partir de certo número de deputados, têm direito a tempo de antena, financi-amento público, e isso transaciona-se. O processo chegou a desvarios.
Tem de haver nova classe política
Tem de nascer dos partidos, eventualmente dos segmentos que são de oposição nos partidos. Não podemos ser perfeccionistas neste processo, as alternativas existentes são autoritárias. Temos muitas assimetrias. Uma coisa é o eleitor dos grandes centros, outra a do Brasil profundo, mas isso faz parte de uma democracia assimétrica como a nossa. Tenho a expectativa de que ao fim e ao cabo o processo eleitoral seja um pouco depurador e tenhamos uma solução racional.
Editado e processado por software OCR de fotos da entrevista de Gilmar Mendes ao site Expresso de Portugal
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