AR NEWS NOTÍCIAS 13 de junho de 2022
Por André Biernath - @andre_biernath
BBC News
As últimas semanas foram marcadas por duas epidemias que preocupam as autoridades de saúde.
A primeira é a hepatite de origem misteriosa, que afeta principalmente crianças. A segunda é o surgimento de casos de varíola em vários países.
Os cientistas estão tentando desvendar as origens e causas desses surtos, que estão ocorrendo em meio à pandemia de covid-19, doença causada por um vírus completamente desconhecido antes de 2020.
E antes que o coronavírus dominasse as notícias, a última década viu a evolução de outros problemas de saúde relacionados ao vírus, como Ebola, Zika, dengue e sarampo.
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Essas crises de saúde são fruto do acaso ou estamos vivendo em um contexto de surtos, epidemias e pandemias?
Os especialistas consultados pela BBC News Brasil consideram a segunda hipótese a mais provável. Atualmente, o mundo apresenta uma série de características que facilitam o surgimento ou ressurgimento de doenças infecciosas.
Sete fatores contribuem para explicar esse cenário: a intensificação dos deslocamentos populacionais entre os países, a urbanização galopante, as mudanças climáticas, o aumento da demanda por proteínas animais, a intensificação dos contatos com áreas silvestres, a rejeição de vacinas e a falta de profissionais de saúde e vigilância .
Viagem internacional
Atravessar continentes e oceanos em horas agora é relativamente fácil e barato.
Tomemos, por exemplo, uma viagem entre São Paulo no Brasil e Urasoe na ilha de Okinawa no Japão. É possível chegar em 33 horas e 10 minutos, com escalas em Dallas e Chicago, nos Estados Unidos, e Tóquio e Okinawa, no Japão.
Na prática, isso significa que você pode estar infectado com um vírus no Brasil e, antes de desenvolver os sintomas, se encontrar literalmente do outro lado do mundo.
Dados do Banco Mundial estimam que, em 1990, um bilhão de pessoas viajaram de avião. Em 2019, esse número subiu para 4,5 bilhões de passageiros, mais da metade da população mundial.
Por um lado, o aumento da mobilidade transfronteiriça representa uma oportunidade de negócios, conexões e contato com outras culturas. Por outro lado, facilita a transmissão de agentes infecciosos e pode acelerar o aparecimento de epidemias, até mesmo pandemias.
Nas últimas semanas, a chamada varíola dos macacos, antes limitada a partes da África, surgiu simultaneamente em outros continentes, com casos relatados principalmente em vários países europeus e nos Estados Unidos.
E esse fenômeno está ligado à mobilidade global.
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Urbanização
A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que em 1950, dois terços da população mundial vivia em áreas rurais.
A agência estima que, até 2050, essa proporção será revertida: em pouco mais de duas décadas, 66% das pessoas viverão nas cidades. E a mudança mais dramática ocorrerá na Ásia e na África.
O grande problema, dizem os especialistas, é que muitos desses novos espaços urbanos carecem de infraestrutura, transporte público, habitação, saneamento básico e saúde.
E isso cria as condições ideais para que vírus e bactérias cresçam e circulem livremente.
O descarte de esgoto bruto em córregos e nascentes, por exemplo, pode causar graves infecções gastrointestinais.
O acúmulo de resíduos em terrenos baldios proporciona um ambiente ideal para a proliferação de vetores, como o mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, zika e chikungunya.
“Também não deve ser esquecido que os ambientes urbanos são propícios a aglomerações, e sabemos o quanto o contato próximo, principalmente em locais apertados e mal ventilados, facilita a disseminação de patógenos”, acrescenta o virologista Flavio da Fonseca, professor da Universidade Federal de Minas Gerais.
Das Alterações Climáticas
O aumento da temperatura média do planeta tem várias consequências para a saúde.
A Organização Mundial da Saúde estima que, entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas estarão diretamente ligadas a 250.000 mortes adicionais a cada ano.
Entre as causas dessas mortes, a entidade destaca o aumento de doenças infecciosas, como malária e dengue.
De fato, os mosquitos que transmitem essas doenças se reproduzem justamente no calor e aproveitam os reservatórios de água que aparecem durante a estação chuvosa.
No entanto, se a tendência for de temperaturas mais quentes, isso representa uma grande oportunidade para muitos vetores ganharem terreno e ajudarem a disseminar ainda mais os agentes infecciosos.
"Estamos vendo agora o surgimento de doenças típicas dos trópicos nos subtrópicos. Já temos casos de chikungunya e febre do Nilo Ocidental no sul da Europa e dengue na Flórida, nos Estados Unidos", explica o virologista Anderson F. Brito, pesquisador no Instituto Todos pela Saúde (ITpS).
Maior contato com animais
Tampouco podemos ignorar o papel que a destruição de reservas naturais pode desempenhar no surgimento de novas doenças causadas por vírus, bactérias e outros patógenos.
Dados do Banco Mundial indicam que em 1990 o mundo tinha 41,2 milhões de quilômetros quadrados de área florestal. Esse número caiu para 39,9 milhões em 2016.
A área devastada de mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados em apenas 26 anos é quase equivalente a toda a Amazônia (maior estado do Brasil). e ultrapassa a área de países como Peru, Colômbia e África do Sul.
Do ponto de vista da saúde, isso também representa uma grande ameaça para os seres humanos. De fato, os vírus estão sempre presentes na natureza, realizando seus ciclos intermináveis de replicação dentro de outro ser vivo.
O crescimento das cidades e do agronegócio acaba por destruir muitos desses reservatórios naturais, deslocando animais e permitindo o contato entre animais e humanos. Os vírus, que antes afetavam apenas uma espécie, podem "saltar" para nós.
"E temos uma visão muito antropocêntrica das coisas. Acreditamos que a maioria dos patógenos afeta a população humana, quando na verdade a maioria desses agentes se encontra na natureza e convive em equilíbrio com seus hospedeiros", acrescenta Fonseca.
"Quando eliminamos esses habitats, o vírus tende a procurar uma alternativa, e quem costuma ser os hospedeiros mais próximos? Nós mesmos", continua.
"Na maioria das vezes, essa interação não leva a lugar algum. Mas há casos em que o patógeno consegue se adaptar bem e começa a evoluir especificamente para a espécie humana, causando novas doenças", acrescenta o especialista.
Uma das mais recentes epidemias de Ebola, por exemplo, começou na África Ocidental em 2014 e ocorreu justamente em regiões de extração de madeira e minerais. Como resultado dessas atividades, os humanos começaram a ter mais contato com animais da região, incluindo morcegos portadores do vírus.
“São ambientes naturais degradados, nos quais a exposição da espécie humana a novos vírus é mais frequente”, especifica.
Mais carne no prato
A crescente demanda por proteína animal é outro fator que aumenta o risco de novos patógenos e surtos de doenças.
A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que a demanda global por cortes de carne bovina aumentará 81% entre 2000 e 2030. O mesmo aumento é observado para outros tipos de gado: cordeiro (88%), porco (66 %), aves (170%) e ovos (70%).
Esses animais nem sempre são criados em condições sanitárias corretas. A falta de padrões e controle faz com que em muitos países esses animais sejam mantidos em condições precárias e anti-higiênicas, ou mesmo misturados com outras espécies.
Isso é tudo o que é preciso para um agente infeccioso sofrer mutação, combinar e "saltar" para os humanos.
Durante a pandemia de H1N1 de 2009, que teve origem no México, estudos mostraram que o vírus da gripe causador de todos esses problemas era uma mistura de quatro cepas diferentes: duas de porcos, uma de aves e uma de humanos.
E este não é um exemplo isolado.
Ao longo do século 20, a humanidade enfrentou várias epidemias de gripe, como a gripe espanhola em 1918, a gripe asiática em 1957 ou a gripe de Hong Kong em 1968. Todas elas se originaram de mutações de vírus que circulavam entre as aves.
“Tudo isso só reforça a ideia de que a saúde humana não é isolada e que precisamos pensar cada vez mais na conexão que temos com a saúde animal e o meio ambiente”, interpreta Brito.
Recusa de vacinas
O sexto fator da lista diz respeito à crescente dificuldade de convencer a população da importância da vacinação.
Seja por dificuldades na produção e distribuição de doses, seja pela influência de fake news sobre o assunto, o fato é que a cobertura vacinal contra muitas doenças está abaixo das metas.
Com a cobertura vacinal abaixo da meta, não há garantia de que outras doenças infecciosas, como poliomielite ou sarampo, causarão sérios problemas após décadas de controle.
“As vacinas são vítimas do próprio sucesso”, interpreta Fonseca.
"As pessoas não veem mais os graves efeitos de muitas doenças infecciosas diariamente, como poliomielite ou sarampo. Como resultado, muitas pessoas começaram a não dar à vacinação a importância que ela merece", acrescenta.
Falta de estrutura
A ausência de uma estrutura básica de saúde e vigilância em muitos lugares permite que um pequeno problema se transforme em uma epidemia ou mesmo uma pandemia.
Os profissionais de vigilância são responsáveis por analisar os registros de saúde e observar se estão ocorrendo mudanças nas tendências, como aumento anormal de casos, internações e óbitos relacionados a uma doença específica em determinada região.
A partir desses dados, políticas públicas podem ser utilizadas para ajudar a conter o problema. Poderá ser necessário reforçar a vacinação neste local, ou controlar a entrada e saída de pessoas durante um determinado período de tempo.
Nesse cenário, também é fundamental contar com um serviço de saúde capaz de gerenciar, diagnosticar e tratar os pacientes da melhor forma possível.
O problema é que grande parte do mundo ainda não implementou essa estrutura. Portanto, muitas doenças podem facilmente aparecer e se espalhar antes que as autoridades nacionais ou internacionais percebam.
A vigilância moderna envolve não apenas observar o aumento de casos, mas também implantar toda uma estrutura tecnológica capaz de sequenciar geneticamente amostras e identificar o agente causador da doença.
“Ao longo da pandemia de COVID-19, a estrutura de vigilância melhorou em países de alta e média renda, mas não avançou o suficiente em países de baixa renda”, compara Brito.
“E temos que entender que, enquanto tivermos pontos cegos nos sistemas globais de vigilância, o mundo inteiro continuará em perigo”, conclui.
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