![]() |
Constelação Familiar: a pseudociência retraumatizando vítimas com aprovação dos tribunais brasileiros |
Por
Natália Pasternak, Carlos Orsi
🔵Para as últimas manchetes, siga nosso canal do Google Notícias on-line ou pelo aplicativo. 📰 aqui
Muitas vezes, as vítimas de violência doméstica demoram a procurar justiça. Eles temem seus agressores, têm vergonha e têm medo de serem tratados injustamente pelos tribunais. No Brasil, uma pesquisa realizada a pedido da Associação Paulista de Juízes (Apamagis) lista os principais motivos pelos quais alguém optaria por não denunciar violência doméstica. Estes incluem medo (73% dos entrevistados), vergonha e medo da exposição (31%), dependência financeira do agressor (19%) e ceticismo da lei e do sistema judicial (15%).
Agora, imagine uma hipotética vítima de violência doméstica, depois de superar todos esses obstáculos. Ela finalmente decide denunciar o agressor. Ela busca justiça, seja punição para o perpetrador, proteção para ela e seus filhos, um divórcio justo ou pagamento de pensão alimentícia. Nesse momento, ela se vê obrigada a reviver seu trauma, sendo até coagida a pedir perdão ao homem que a feriu ou a seus filhos. Tudo isso pode acontecer em uma sessão de “Constelação Familiar”, a pseudociência de estimação do sistema judiciário brasileiro, implementada com o pretexto de ajudar na “resolução de conflitos”. Por mais absurdo que pareça, isso vem acontecendo no Brasil desde 2012.
A Constelação Familiar, ostensivamente uma forma de psicoterapia, usa jargões “quânticos” para promover uma ideologia de dominação masculina e submissão servil feminina que parece remontar à Idade Média. Essa “terapia” foi criada na década de 1970 por um ex-padre católico alemão chamado Bert Hellinger. É descrita no livro Love's Hidden Symmetry , de Hellinger, publicado em 1993. A técnica chegou ao Brasil em 1999, foi implantada no Judiciário em 2012 e foi trazida para o Sistema Único de Saúde em 2018 , como parte do Plano Nacional de Atenção Integral e Medicina complementar.
Em uma sessão típica de constelação, os voluntários assumem o papel de familiares do paciente e, segundo Hellinger, “campos de energia”, como os “campos morfogenéticos” de Rupert Sheldrake , telepaticamente farão com que os voluntários se comportem de uma determinada maneira que trará sobre memórias reprimidas e conexões inconscientes dos parentes dos pacientes e seus ancestrais. Esse conteúdo reprimido ou oculto se manifestará na geometria das pessoas na sala – seus lugares e posturas em relação umas às outras – e esse mapa, ou “constelação”, devidamente interpretado por um “constelador” profissional pode curar o paciente de transtornos mentais sofrimento e/ou restabelecer a harmonia familiar. Ou é o que dizem Hellinger e seus sucessores.
Segundo a doutrina, a chave para a correta leitura da “constelação” é o suposto fato de que todos têm um papel a desempenhar na família, e esse papel deve ser respeitado. Quando as pessoas extrapolam ou negam seus papéis, a harmonia da família fica desequilibrada, e isso pode levar a doenças, agressões, assaltos, incestos e violência. O esquema ideal, ou “saudável”, é altamente hierárquico, com o pai no topo. Em seu livro, Hellinger diz que o papel da mulher é seguir o marido na língua, na família e na cultura, e os filhos devem fazer o mesmo. Há uma hierarquia clara na família, com o pai como líder e deveres a serem cumpridos.
Por exemplo, em um caso de incesto, em que o pai abusa sexualmente da filha, Hellinger explica que isso acontece porque a mãe provavelmente não está cumprindo suas obrigações conjugais. Como o pai está sendo negligenciado, segundo Hellinger, é natural que a filha se “ofereça” como substituta. O Skeptic's Dictionary cita Hellinger sobre o assunto:
Agora sobre incesto. Se você se depara com casos de incesto, uma dinâmica muito comum é que a esposa se afaste do marido, ela recuse uma relação sexual. Então, como uma espécie de compensação, uma filha toma seu lugar. Este é um movimento inconsciente, não consciente. Mas você vê, com incesto há dois perpetradores, um em segundo plano e outro em aberto. Você não pode resolver isso a menos que esse perpetrador oculto seja trazido. Há sentenças muito estranhas que vêm à tona. A filha pode dizer à mãe: 'Eu faço isso por você'. E ela pode dizer ao pai: 'Faço isso pela mãe'.
A homossexualidade também é “curável”, de acordo com Hellinger, que acredita que geralmente ocorre quando um menino “toma o lugar” de uma irmã falecida. Em outro livro, “Acknowledging What Is: Conversations with Bert Hellinger” , o guru da constelação familiar diz que as vítimas de abuso sexual que eventualmente se tornam prostitutas o fazem por causa de um amor inconsciente pelo perpetrador e por carregar sua culpa.
No Brasil, a “terapia” atingiu um novo patamar, na forma de “Direito Sistêmico”, conceito criado – e patenteado – pelo desembargador Sami Storch. O Juiz Storch promove o uso da constelação familiar como forma de resolução de conflitos. Ele afirma que o objetivo do Judiciário deve ser a harmonia e o amor entre as relações humanas, e não apenas distribuir justiça e fazer cumprir a lei. Várias mulheres se apresentaram para relatar o uso dessa prática em questões de direito de família, como divórcio, pensão alimentícia e casos de violência doméstica. Algumas foram encorajadas a pedir perdão aos seus agressores, outras foram obrigadas a enfrentar seus agressores e reviver seus traumas.
A Storch também vende cursos online para qualquer pessoa interessada em se tornar um “constelador” profissional. Por R$ 2.000,00 (cerca de £ 350), você pode se inscrever em um curso online de 14 horas e receber seu certificado. Em comparação, para obter um diploma de bacharel em uma faculdade de psicologia no Brasil, o Ministério da Educação exige pelo menos 3.600 horas de aulas, além de estágio supervisionado e projeto de pesquisa.
Devido ao trabalho realizado pelo Instituto Questão da Ciência (IQC) no Brasil, a constelação familiar foi exposta como uma pseudociência tanto no sistema de saúde quanto no sistema judicial. Uma vez no debate público, a “terapia” virou tema de Audiência Pública no Senado .
O senador Eduardo Girão convocou especialistas da área, entre eles a viúva de Bert Hellinger, Sophie Hellinger, e o juiz Storch, para destacar as maravilhas da técnica. Girão diz não ter achado necessário convocar outros profissionais da área da psicologia ou do direito que se opusessem à ideia da constelação familiar, porque acreditava sinceramente que ninguém poderia se opor a tamanha maravilha. Graças à intervenção de outro senador, Sergio Petecão, o IQC foi convocado, juntamente com uma equipe de cientistas.
A audiência alternou entre uma lista de todas as falácias lógicas típicas – testemunho positivo escolhido a dedo, apelos à “tolerância” e “mente aberta” para encobrir a ausência de provas e os perigos muito reais da prática – e o não -depoimentos absurdos de psicólogos, físicos e até mesmo juristas.
Do jeito que as coisas estão, a Constelação Familiar ainda é um modo aceito de “resolução de conflitos” no Brasil, seu uso pelos tribunais autorizado pelo Conselho Nacional de Justiça, o supervisor de ética do sistema Judiciário. Formalmente, a lei brasileira de proteção à mulher ( Lei Maria da Penha ) proíbe o uso de quaisquer mecanismos de “resolução de conflitos” em casos de violência doméstica: tais casos devem ser tratados como processos criminais, ponto final. Isso restringiria a aplicação da Constelação Familiar a questões de pensão alimentícia, guarda dos filhos, divórcio e afins. Mas não é isso que acontece.
O hábito cultural conservador de apelar para a mulher “perdoar” para “salvar o relacionamento”, aconteça o que acontecer, ainda é forte no Brasil, e muitos juízes se veem como dispensadores salomônicos de sabedoria, ao invés de servidores públicos encarregados de aplicando a lei. Nesse cenário, a Constelação Familiar é quase irresistível.
Mesmo em casos não violentos, no entanto, a adoção de conceitos e práticas pseudocientíficas e místicas limítrofes (incluindo comunicação mental com ancestrais) como ferramentas para os tribunais seria preocupante. O uso de tais conceitos e práticas para levar as mulheres a aceitar uma estrutura sexista para lidar com seus problemas familiares é inaceitável.
Paulo Almeida, neurocientista, advogado e diretor do IQC, disse na Audiência do Senado que o Estado brasileiro é “altamente permeável” às pseudociências: lobbies com acesso a comissões especiais de assessoramento, legisladores e mesmo burocratas individuais e de alto escalão têm pouca dificuldade em encontrar maneiras de contornar o escrutínio de agências reguladoras e científicas como a Anvisa (a “FDA brasileira”) e ter seus produtos ou crenças consagrados em alguma forma de política pública.
Isso é especialmente verdadeiro no caso de sistemas de crença que têm um sabor espiritualista, por razões que abordamos em um artigo anterior . A Constelação Familiar, no entanto, traz perigos que vão além do mero desvio de dinheiro público ou da eventual ameaça à saúde das pessoas que optam por abrir mão de tratamentos baseados na ciência. É algo que afeta a vida e a mente de pessoas muito vulneráveis, reabrindo feridas e acumulando traumas sobre traumas. E está acontecendo agora.
Com Agências
Natália Pasternak
https://www.iqc.org.br/
Natalia Pasternak é microbiologista com PhD em genética bacteriana e professora de ciência e política na Universidade de Columbia. É fundadora e atual presidente do Instituto Questão de Ciência.
Carlos Orsi
https://www.iqc.org.br/
Carlos Orsi is a journalist, editor-in-chief of Revista Questão de Ciência, author of "O Livro dos Milagres" (Editora da Unesp), "O Livro da Astrologia" (KDP), "Negacionismo" (Editora de Cultura), and co-author of " Pura Picaretagem" (Leya), "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), for which he was awarded the Jabuti Prize, and “Contra a Realidade" (Papirus 7 Mares).
O AR NEWS publica artigos de várias fontes externas que expressam uma ampla gama de pontos de vista. As posições tomadas nestes artigos não são necessariamente as do AR NEWS NOTÍCIAS.
Continue a leitura no site após o anúncio: